quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Manual dos sentimentos mudos




Tão simples
que o senhor encostado no balcão,
se sentiu constrangido

quando lhe disse
que a poesia viria como um recibo
na ausência da explicação


domingo, 27 de maio de 2018

Uma crônica bem humorada






A van pára e a porta se abre, deslizando como um pedaço inerte de matéria sendo movido por um dispositivo autômato qualquer, uma mulher de mãos dadas com uma criança - de, talvez, 6 anos de idade – segura a mochila do filho pela alça, enquanto projeta a criança para dentro da van, oferecendo o impulso necessário para que o pequeno ultrapasse o obstáculo que é a alta soleira do veículo para as suas reduzidas dimensões. Depois de concluída essa ação, pede ao menino que se segure enquanto coloca a mochila também lá dentro. O próximo passo é subir ela mesma, com as dificuldades que seu peso corporal, aparentemente, impõe. Apesar do esforço, ela tem êxito na tarefa e agora procura um lugar para si e para o filho, quando ouve, vindo de trás do veículo, uma voz carregada de intimidade se dirigindo a ela:

- Dona Neuza! O que tá fazendo a essa hora na rua?! Fazendo hora extra – Diz o homem, provavelmente, em referência ao horário em questão, algumas poucas horas depois do final do chamado expediente comercial.

A mulher identifica imediatamente um assento e dirige a ele o seu filho, antes mesmo de responder ao senhor que lhe teve a palavra. Ele sentado, ela devolve: “Minha hora extra é essa aqui!” - enquanto sacode levemente o menino pelo pulso, fazendo dele ao mesmo tempo seu protegido e objeto da conversa que tem em mente. Mas o menino é já suficientemente perspicaz para entender do que se trata e reage, sem nem ser convidado na conversa: “Sou hora extra não! Sou filho!”

A mãe ironiza a fala do menor, pouco versado nas paródias sociais da qual ela toma parte: “É filho?! Filho de quem?! Do seu pai?” - o garoto permanece silente, sem resposta, enquanto ela completa – "Só se for filho dele mesmo, porque pra mim você só dá trabalho.”

O menino fecha a cara e faz bico, sem argumentos para defender sua própria condição de produto de uma cadeia familiar específica, enquanto a mulher se desvia dele e retoma a conversa que se havia iniciado com o senhor no fundo.

- Hora extra que nada! O patrão perde os dedos pra não dar hora extra, seu Walter. - se refere ela ao fato do custo de um tal expediente não ser vantajoso para o seu empregador, mas também deixando emergir da sua fala um julgamento da personalidade do homem em questão - ganancioso a tal ponto que entregaria falanges e metacarpos para não se ver estreitado pelas margens nos seus preciosos rendimentos.

- É, dona Neuza... Se não tá fácil pra eles, imagina pra nós. - diz seu Walter, sempre com um toque de irreverência na voz, como quem pratica alguma intencionada política de coleguismo, mas sem deixar de mencionar que existe no enredo um “nós” e um “eles”, porque é, afinal, um senso particular de identidade que media sua relação amena com a mulher em diálogo e, porque, o outro é quase sempre, por alguma razão, aquele que os expõe a uma situação de transporte como aquela, que se não é a pior possível, tampouco é de algum modo agradável.

“Não tá fácil pra eles?!” - ela questiona a fala do homem - “Que isso, seu Walter?! O senhor já ouviu reclamação de patrão? - e completou como quem muito antes já houvesse domesticado a resposta - “Reclamação de patrão é sempre coisa pouca e bobagem.”

E arracou do “velho” umas boas risadas que, de tão honestas, contagiaram a mulher e provocaram sorrisos coadjuvantes à volta. Pois, riram os dois sonoramente e por alguns segundos mais e quando cessaram, foram imediatamente capturados pelo rosto enfurecido do menino que, a um só tempo decidido e atrapalhado em continência do choro iminente, falava alto, gritava quase: “João! João! Meu nome é joão e eu sou filho! Hora extra o caramba!”

Teriam todos gargalhado por horas a fio não fosse o cansaço do dia acumulado e a obrigação de, em algum momento, retirar o dinheiro do bolso e entregá-lo ao motorista.

Dinheiro na mão e um rosto sério e esse é o retrato final. Pois nem dona Neuza, nem seu Walter têm de sobra tempo, nem ânimo pra fazer da história contada uma “crônica bem humorada”, como o seu condutor gostaria.



segunda-feira, 21 de maio de 2018

O Formigamento




Ah! Os neurônios se agitam
Sentido esse do atraso,
acaso, comunicante acaso
Nervos pálidos, calados
são vítimas eleitas
d’uma pressão momentanea
seja opressão deliberada ou subcutânea

Mas essa paixão é elastica
e do estado compresso retorna
de um borrão expandido uma forma
e novamente um sentido
que o ouvido da mente recorda
antes tão crú não se via
agora arde, dorme e chora

Não tenha medo, membro amigo
levante-se, é só uma parestesia
mexa os dedos e sinta
você é a voz que comanda
a dor é um grito contido,
transborde
pois és da forma um lamento

quarta-feira, 14 de março de 2018

O busto de Hera






Felipe, de 11 anos, pula de cima da cama com um boneco empunhado e alcança uma massa de brinquedos depositada no chão, projetando a figura que tem em mãos como se se dispondo a atacar um inimigo cruel, a quem não se deve conceder abono nem na fantasia mais inocente.

Do outro lado do quarto, Luis, prestes a completar seu décimo segundo ano de vida, organiza uma fortaleza com caixas de sapato e livros, para servir de base ao exército de plástico que mantém ao seu redor. Silencioso, trabalha diligente naquela organização enquanto, vez por outra, levanta a cabeça para observar a movimentação do amigo.

Trata-se de uma brincadeira em comum, mas em que os dois participantes, em juízo de duas personalidades muito distintas respectivamente, encontram prazer e motivação. Felipe, aos golpes e gritos, encenando situações de combate e, eventualmente, narrando sua própria continuidade. Luis, concentrado, escolhendo posições estratégicas e exercitando seu talento em encontrar soluções arquitetônicas, que deveriam satisfazer tanto aos desígnios da diplomacia entre amigos quanto à guerra fictícia que se anuncia como cenário em vista.

A mãe entra no quarto e interrompe a ação, ordenando indulgentemente às crianças a seguir para a cozinha, onde o lanche se faz à espera. No caminho do quarto à cozinha, encontram-se o pai e a avó de Luis, sentados no sofá, assistindo tevê, calados. O pai tem consigo um copo de refrigerante, enquanto a avó se entretem à mão com um de Whisky. A sala se estende como um largo corredor entre a porta do quarto e a abertura que inicia a cozinha, mas a resignação dos dois diante do aparelho determina que a única atenção dirigida à cena pelas crianças se direcione aos ruídos que se projetam da televisão para fora, de onde se pode ouvir com clareza apenas a voz do apresentador de um programa de auditório, que tanto reconhece o despropósito do show que se limita a ler as indicações de roteiro no prompt eletrônico, incluindo aqui e ali uma expressão indiomática qualquer para dar cor a uma fala que não enaltece senão o enfado da proposta.

Durante a refeição, Felipe explica a Luis seus planos para o grupo de soldados que se encontram sob seu comando, enquanto Luis, com os olhos e ouvidos atentos ao amigo, mastiga apropriadamente cada pedaço que, com uma ou duas mordidas, arranca do sanduíche. Vez por outra, pergunta sobre uma qualquer irrelevância, mas apenas para garantir ao outro a atenção que, de fato, investe em seu interlocutor.

Ao cair da noite, após muitas idas e voltas, brincadeiras findas e reiniciadas, a mãe de Luis retorna ao quarto e anuncia aos garotos que a hora de deitar se aproxima. Ela explica a Felipe onde ele deve dormir e orienta - em mãos com uma toalha entregue a ele em seguida – o menino que siga para o banho. Luis, no conforto e intimidade de sua própria casa, cuida de si e esforça-se ao máximo para que o amigo não se sinta deslocado. Por exemplo, quando lhe pede um copo d’água, conduz-o ao armário em que se guardam os copos e lhe apresenta a garrafa com água na porta da geladeira, sem contudo tomá-la consigo, dando a entender ao menino que abra a geladeira e se sirva sempre que desejar.

Já deitados, a luz se apaga. Alguns minutos em silêncio e Felipe chama o amigo: “Você tá acordado ainda?!”

Luis responde: “O que é?” - com economia, mas sem a intenção de ser rude.

Felipe, então, explica que alguma coisa se forma em seu peito, um desconforto sutil, mas suficiente para tirar-lhe o sono. Ao mesmo tempo em que se articula para explicar-se ao amigo, começa a entender do que se trata. Percebe-se, subitamente, “longe de casa”. Longe de toda aquela estrutura que, nos últimos 11 anos, havia sido a sua fortaleza. Pai e mãe - os dois que até ali se afirmaram como a linha de frente sempre disposta a protegê-lo do menos anunciado perigo - lá não estão. Ansiedade e melancolia se misturam. Ele levanta o tronco e se enconsta na cabeceira da cama. Pede a Luis que acenda a luz.

Luis atende, imediatamente. Em seguida, fixa o olhar no rosto do colega por alguns segundos e pergunta, um pouco constrangido, mas com curiosidade genuína: “Você tá chorando?”

Felipe limpa o rosto imediatamente, mas sem efetivamente negar a pergunta, diz que sente falta da mãe.

Luis não sabe o que fazer e acaba batendo na porta do quarto dos pais – a quem pede ajuda. O pai pergunta: “O que a gente faz?” - Transferindo imediatamente à mãe a responsabilidade de tomar uma decisão em ação.

A mãe segue ao quarto, conversa com Felipe tentando acalmá-lo. Ele retém o choro, mas as lágrimas ainda assim escorrem, enquanto ele explica que não está acostumado e dormir fora de casa. Ora, ele mesmo talvez não imaginasse que o cair da noite traria todos aqueles sentimentos à tona; que o entusiasmo do dia se transformaria em medo e insegurança e em todo aquele sussurrar de vozes ausentes pela casa toda vez que a luz se apaga e o silêncio quase absoluto novamente se instaura. Repetem o ritual uma, duas, três vezes. Depois disso, a mãe desiste e decide que a única solução razoável é deixá-lo à própria sorte, pensando, talvez, que o amadurecimento também pede certos sacrifícios. Isso porque, àquela hora, não seria nem prático nem razoável ceder à fraqueza do menino, também porque seus pais morassem a pelo menos 40 minutos de carro dali.

Levantou-se, então, a avó, não sem alguma dificuldade. Não porque ao corpo envelhecido faltasse força, mas porque lhe faltava equilíbrio, e o andar cambaleante se justificava à medida que sua passagem espalhava o cheiro de álcool, que lhe evadia do corpo, pelo hálito e pelos poros - pelo hálito, principalmente.

A essa altura, conversavam as crianças com a luz do quarto acesa. Porque Felipe não conseguisse dormir, compreendera Luis que, também ele, não dormiria, oferecendo-se, então, como única opção, e opção mais correta, aquela de oferecer companhia ao colega, ainda que deitado à cama e com lençóis esticados sobre o corpo, dos pés ao peito.

A avó entrou no quarto e, junto com ela, o cheiro de alcool. Ficaram os dois em silêncio, mas os olhos vermelhos e umedecidos de Felipe acusavam o choro que precipitou toda a situação.

“O que tá acontecendo aqui?” - Perguntou a avó, e soluçou uma vez.

Explicou Luis: “O Felipe não consegue dormir.”

“Não consegue dormir por que?” - Retrucou a avó sem muita delicadeza.

Nesse instante, a figura ameaçadora da mulher embreagada e pouco compassiva, pressionava ainda mais o sentimento de insegurança que se acumulava dentro do menino que, antes de uma resposta de Luis em vista, tomou parte no diálogo, não conseguindo, no entanto, evitar as lágrimas e o choro à medida que dizia: “Eu... sinto... falta da minha… da minha mãe. Eu preciso... da minha mãe...”

A senhora engoliu a seco a própria pergunta em espanto. Estava absolutamente surpresa que um rapaz daquela idade ainda se dispusesse a caprichos como aquele. Mas o espanto passou e logo deu lugar a irritação. Ela perguntou uma vez: “Precisa da sua mãe?!” - e repetiu, mudando o rítmo da sentença, impregnando nela um misto de zombaria e despeito: “Precisa da sua mãe, é?!” - acrescentou ainda: “Precisa da sua mãe pra que?! Pra te dar ‘mamá’?!” - já quando a zombaria se tornava tão evidente, que sobrava às crianças apenas a atenção e os olhos arregalados. Deixou cair a alça do sutiã, puxou para fora com a mão direta o seio do mesmo lado, que imediatamente murchou e se espalhou sobre a mão enrugada, ao mesmo tempo sustentando e balançando o peito na frente do garoto, enquanto gritava: “Mama aqui, ó! Você quer mamá?! Então mama aqui, seu muleque mimado! Mama!”

Performou durante quase 1 minuto, até retornar a um estado de animo mais ameno e se retirar do quarto, sem dizer mais nada. Com ela, foi-se embora o cheiro de álcool. As crianças apagaram as luzes e fecharam os olhos, não se sabe porque dispostas mesmo a dormir e tentar esquecer por algumas horas a nada ortodoxa cena, ou apenas por medo de que acontecesse mais uma vez, ainda que já naquele instante, no escuro das palpebras, ruminavam os traumas prováveis que naquela noite tiveram origem.

A avó voltou ao seu quarto, apoiando-se pelas paredes. Pensava, quase arrependida: “Será que eu fui muito longe?!” - mas logo se justificativa: “Não se deve dar moleza a uma criança mimada. Hoje chora porque está longe da mãe, amanhã porque não conseguiu a vaga de emprego. O mundo é um lugar dificil...”

Nem trauma, nem disciplina. Para ela, cada um a lidar com suas próprias emoções. As dela, certamente afloradas pela bebida, repercutiam naqueles a sua volta como as deles repercutiam nela. O menino roubou-lhe o sono, teve em resposta o que teve. Cada um conduzindo a si mesmo - e por conta própria – ao que se deve tornar. “O que não nos mata, nos deixa mais fortes”, teria ela pensado se a fraseologia nietzschiana lhe estivesse à disposição. Não estava, ainda que o espírito dionisíaco lhe caísse a caráter.

Deitou a cabeça no travesseiro, virou-se para o lado e começou a roncar.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

O Juizo




A realidade é um sentimento ao redor do qual posiciono as coisas que vejo, que ouço e ignoro. Eu sinto o meu corpo, em toda intangibilidade do tato, sinto a cada instante estas células que se comprimem a dar volume a essa forma, que suponho seja como uma linha seguindo por todo e cada um dos pontos dessa epiderme que encontra seu sentido mais diligente no contato com o ar . Exceto pelas solas dos pés, que sentem sobre si o corpo todo, esse emaranhado de células ao mesmo tempo tão estranho e tão íntimo a essa consciência que os reconhece e os dá unidade.

O rúido cumpre, da mesma forma, um desenho sonoro em vista de um objeto que, da ponta dos dedos ao couro cabeludo, também ouve. E elabora a compreender que à imagem que avança a partir de um objeto qualquer fora de si pertence também uma voz. Tal é a conversa silenciosa que a consciência do corpo trava com o mundo. Ao mesmo tempo os conecta e os separa, como a pontuação sintática de um parágrafo cheio de ideias a comunicar.

O corpo é; e assim permite a todos os outros corpos que sejam; e pede gentilmente ao espaço que não seja; ao silêncio que negue; e à ausência que ignore. Encontram todos seu lugar no mundo, esse cômodo tão estreito que contém apenas o que se sente, se ouve e se vê, mas nunca além das bordas desse campo sem dimensões que o corpo lhe empresta. Damos a ela um nome e, prontamente, ela é também. A realidade. Ai de quem duvide!

Ainda assim, nada explica o prazer ou o desgosto. Pois o juizo é uma fantasia absurda. A ele não importa quem seja e quem seja ausência. E o corpo é dele refém, a todo instante que é de si consciente. Sente o frio que congela a pele, mas gosta. Sente o aroma do café ebulindo e, no entanto, detesta. Não importa o que seja a realidade, cabe sempre ao juizo uma nota de aprovação, um valor-sentimento, uma legenda, resumindo tamanha complexidade a um capricho deliberado.

E tudo mais - tempo e espaço e essência - não tem em si outro significado que não o de serem, em dado instante, de um juizo objeto. Diga-me o que quiseres do tempo, eu te direi como me sinto a respeito. Descreva-me o mundo pelas lentes da mais meticulosa ciência e, ainda que eu nada compreenda, terei uma nota de gosto a dar. Porque meu acesso ao mundo não se dá pela pele, pelos olhos ou pelos ouvidos. Também não se dá pela palavra – essa que tão frequentemente nos entorta os sentidos. O mundo é, afinal, a voluntária e inegociável constante de um nele sentir-se como deveras se sente.

O átimo, o íntimo e o étimo, de todo modo, são todos ótimos.



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

O coração do mundo




Andava pela rua cabisbaixo, cansado, faminto. A passada em stacatto das pernas articuladas em sincronia com os braços soltos, pendulares, e entre um lance e outro de vista, um pensamento em sincronia com o a fome dos desejos populares - aqueles mesmos do encanto com as imagens em tela.

Na sua frente, um aparelho celular chama sua atenção numa bancada num corredor de barracas enfileiradas, em uma zona de comércio ao ar livre, sem muros. Percebe-o ao mero alcance da mão. Poderia simplesmente pegá-lo, e, afinal, não basta apenas querer? Não, não basta… e retorna ele a olhar para o chão e, com a cabeça baixa, segue seu caminho. A esperaça de um futuro melhor em recompensa pelo comportamento “correto”, mantém a passada em curso - sem desvios ou imprevistos.

beatius est magis dare, quam accipere... A recompensa é a ilusão dos ovinos.


Não que o impulso seja a premissa de toda ordem de uma tal natureza, mas, muitas vezes, é a esperança o grilhão que convém questionar.  

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Tome Nota!





Então, eu havia parado de tomar notas. Percebi-me completamente outra pessoa, pois, aquele de antes, sempre disposto a tomar notas das ideias mais incabíveis era uma criatura sã e consciente de si – uma contradição tão harmoniosa quanto a própria palavra, já que a consciência de si conserva um parentesco inevitável com a loucura. Afinal, a consciência de si é a própria negação da vida, resultado do fluxo incessante no qual o mundo - a envolver-nos com suas coisas de mundo - faz de nós parte dele. Quanto menos conscientes de nós mesmos, mais nos permitimos ser com o mundo, e isto é o resumo próprio da sanidade.

Mas nas ideias que deixamos pra trás, pintam-se retratos de uma realidade que nos apresenta o mundo em singular clareza. Por isso mesmo, a sanidade difere essencialmente da consciência de si, que é lucidez, clareza… a sanidade , por outro lado, é contraste, instável, indeterminada – é encontrar-se no fluxo ininterrupto das ideias sem prender-se a nenhuma delas. Mas ideas, veja você, todos as tem, o tempo todo. Diferem, no entanto, aqueles que tomam notas, alcançando-as – as ideias – fora da água corrente da vida ela mesma. Percebem-se, então, como seres pensantes, porque pensam ideias e, em dado momento, param-se nelas, interrompendo a sequência inabitável dos pensamentos que dão margem a própria vida. Recortam - no mar das coisas pensadas, passadas e presentes – um instante impregnado de um sentido tão particular, que não é possível ter os dois ao mesmo tempo: a vida e o pensamento. Porque a vida é o movimento dos passos que se ultrapassam, e o pensamento é o momento preciso da chegada do pé ao solo.

Foi quando parei de tomar notas que o tempo correu, como quem corre ao supermercado para comprar café, açúcar ou batatas. Nimguém é, de fato, consciente de si enquanto compra batatas e, no entanto, é a sanidade necessária para comprá-las. Mas quando tomo notas, reconheço que as ideias existem em si e por si; eu mesmo existo porque as concebo e as circunscrevo à parte da vida mesma, mas posso deixar-me novamente perder no fluxo incessante que a sanidade me pede, porque tenho naquelas inscrições pontuais um recipiente seguro para esse líquido semitransparente que são as ideias. Tomar notas, alguns dizem, é a atitude dos acumuladores, guardando caixas e partes sem todo, apenas porque esperam que o mundo que agora os rejeita, recorra novamente a eles, num tempo ainda não desdobrado… mas a memória também é acúmulo. Foi, pois, quando parei de tomar notas que me vi sem importância para um eu futuro – um eu que tangencia a consicência do agora, mas que se projeta adiante, como um membro que se alonga para alcançar aquilos que os olhos apenas veem a distância. O homem que se pára diante de um pensamento, reflete a si mesmo, como ali houvesse um espelho, o pensador indisfarçável de uma ideia, mas ao refletir essa imagem, anuncia também uma criatura nova e que se transforma a cada movimento da luz no espaço.

Tomo, assim, mais essa nota – da frustração dirigida de quem há muito não as tomava - a vida vivida sem elas, parecia-me menos sã, ainda que mais salutar... talvez porque me tenha acostumado a pensar-me como alguém que as toma.

Mandarei escrever na minha lápide, tomando a nota em pedra: “Também não há mal algum em comprar batatas, ainda que as batatas nada digam de ti. Pois, somos mesmo, apenas até onde nossa fome nos dá permissão.”


A vida, de qualquer modo, é outra coisa… e não cabe na nota.