terça-feira, 18 de abril de 2017

O Silêncio dos Cordeiros



O rapaz entrou no ônibus e se dirigiu diretamente a última fileira, avistando lugar ao lado de um senhor de idade, de cabelos ralos e brancos e pele escura, que conversava com uma mulher negra sentada num banco imediatamente a frente. Pediu licença, conforme tomava em mãos a mochila – volumosa o suficiente para incomodar caso viesse ali presa as costas - e sentou-se, olhando para moça que mantinha o rosto virado para trás, uma vez engajada que estava no diálogo com o homem já descrito.

A mulher, então, olhou nos olhos do rapaz com tal profundidade, que capturou seu olhar a medida que entregava a ele também um sorriso. Ele sentiu-se como se não pudesse mais desvia-lo; sentiu-se deselegante com a simples ideia de ignorar a atenção que a moça dirigia ao seu rosto, mesmo que naquele momento as palavras dela ainda tivessem como ouvinte o senhor ao seu lado. Além do que, tratava-se de um sorriso verdadeiramente cativante. A medida que as luzes do sol invadiam o ônibus – por volta das 16 horas, numa tarde ensolarada – alcançavam a superfície branca dos dentes engenhosamente enfileirados na parte de dentro da boca da mulher, e eram imediatamente refletidas aos olhos de qualquer um que se dispusesse a dar testemunho ao sorriso da moça, cuja beleza tampouco era de se ignorar.

O olhar dela, então, voltou ao senhor a quem ela dizia: “Ele sabe de tudo que acontece e tudo o que acontece, acontece porque ele quer”. Concordava o homem com um aceno enfático de cabeça, e ela prosseguia: “Não há quem esconda nada dele, porque ele tudo sabe e tudo vê”. E o homem mais uma vez confirmava em acordo com a sentença da moça, repetindo laconicamente o enredo: “Ele vê tudo!”. A mulher se alongava naquele poema, que agora parecia requisitar dela uma expressão mais intensa do corpo, que se mexia energicamente conforme ela subia também o tom de voz: “Ele que tudo pode e que tudo faz, nada faz que não seja para o bem, e nada quer que não seja o nosso bem!”. O homem acompanhava como se suas linhas servissem agora de contraponto as melodias que já se ensaiavam na voz dela: “Ele tudo pode!”.

Nesse instante, o olhar da mulher vagava um a um os passageiros do ônibus, encarava aqueles que se atreviam a olhar pra ela, e se insinuava para aqueles que a ignoravam. As mãos gesticulavam com o dedo em riste, dando gravidade às sentenças que proferia e, já ali, se havia perdido a discreção antes recolhida no diálogo com o senhor. Ela encontrava agora no ônibus quase cheio uma platéia em potencial.

“A vida é ele quem dá e é ele quem tira!” - Dizia ela, seguida pelo comentário abafado do senhor atrás de si: “Ele tudo sabe!”.

Levantou-se, então, de sobressalto e agregou àqueles versos uma melodia já então formalizada. Seguiu pelo corredor do ônibus, cantando – e, agora, mal se ouvia o senhor de idade, que fazia de tudo para que a sua parte, apesar do baixo volume, mantivesse para com a voz da novissa uma afinação coerente.

“Ele tudo saaaaabe, ele tuuudo vêee! Ele tudo poooode e tuuuudo faaaaz......”

Terminou a performance alogando a nota entoada com a última vogal e fazendo tremer a voz, vibrando controladamente as cordas vocais. Sem voltar a sentar-se, esperou pela próxima parada e desceu do ônibus.

O senhor permaneceu, bem ao lado do jovem com a mochila no colo. Olharam-se por um breve instante e um silêncio sem jeito tomou forma entre os dois, sentados lado ao lado, enquanto lá fora, ecoava o ronco barulhento dos carros e a paranóia ininterrupta da cidade.

Aos poucos, o impacto deixado pela lírica envagelizadora da mulher se dissolvia nas conversas amenas que nasciam da composição humana daquele ônibus, com as pessoas dispostas lado a lado, de uma ponta a outra.

O ônibus parou novamente e, dessa vez, entrou um homem carregando uma grande sacola, constituida de numerosas sacolas menores, todas presas a um cabo que se prendia, no topo, a um gancho. Apoiou a sacola pelo gancho no corrimão preso ao teto do ônibus e disse: “Senhoras e senhores, estou aqui para lhes oferecer essa excelente oferta. Cada saquinho desse contém 10 balinhas de côco: macias e açucaradas, para entreter a vossa viagem. Mas isso não é tudo” - e fez uma pausa, certo de que o que tinha a dizer a seguir justificava o drama acrescido - “São balinhas de jesus! Cada balinha dessa foi abençoada por Deus-meu senhor-Jesus Cristo. E cada um de vocês que comprar e chupar uma balinha dessas, será também abençoado por ele! Isso tudo pela mísera quantia de 2 reais. Dois reais pelo doce e também pela benção de nosso senhor Jesus Cristo.”

Tirou a sacola do gancho e atravessou o corredor do ônibus, recolhendo o dinheiro e entregando as balas às dezenas de passageiros que lhe estendiam as mãos. Chegou até o fundo do ônibus, onde estavam o senhor e o rapaz com a mochila no colo. Olhou desconfiado e fundo nos olhos do rapaz com a mochila e, sem recolher o olhar, puxou um pacotinho de balas e ofereceu ao senhor ao lado, que estendeu a mão e aceitou sem haver tirado do bolso uma moedinha sequer. Virou-se lentamente, e seguiu, descendo do carro no ponto seguinte.

O velho, lentamente, abriu o saquinho e levou à boca uma bala. Sem dizer uma palavra, virou-se para aquele ao seu lado e ofereceu do saquinho que tinha em mãos. O outro fez que não e agradeceu. Guardou ele, então, o saquinho no bolso e cruzou os braços. Seguiram os dois lado a lado, ainda em silêncio. Ao rapaz restava a superfície áspera da mochila a pesar em seu colo e os seus pecados todos, incautos, a pesarem na consciência. Ao senhor, apenas o doce gosto do açúcar e do côco, e o balanço do ônibus, ritmado...



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