sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Guarani

O barulho do ar que escapa - como resultado da descompressão que regula o funcionamento do ônibus quando este pára e abre as portas – chama atenção do pedestre que segue distraído. Entram os últimos e o veículo fecha as portas enquanto o ônibus permanece parado devido ao engarrafamento que enfileira dezenas de automóveis naquela Rua do Passeio, já quase em frente a Escola de Música da UFRJ.

Uma panorâmica: da calçada, é possível ver toda a extensão lateral do veículo, com suas janelas dispostas de modo a convidar diálogos soturnos entre os passageiros que habitam tais posições e os outros que esperam no ponto. O olhar fixo de um garoto na parte de trás do ônibus chama atenção: ele recai sobre a figura de uma senhora que, com os braços cruzados, mantém firme a bolsa pendurada em um deles. A mulher ignora a presença do menino que se faz sentir cada vez mais a medida que a atenção do espectador delineia a cena. O menor, preto e em cujos trajes (ainda que em relação apenas àquilo que se dispunha a vista) se identifica uma condição social definida, encara uma mulher na idade de seus, talvez, 50 anos, vestida como que atenta ao escrutínio social que a cerca. Não se pode dar a ela, precisamente, um contorno de classe, e o fato de que ela espera em um ponto de ônibus redimensiona a desconfiança do avaliador, que a primeira vista identificaria naquelas roupas dela o traço residual de um privilégio, ainda que relativo.

Num primeiro momento, entende-se que se trata de um olhar de intimidação pelo simples fato de que o olhar que ele dirige a ela não cessa e não quer cessar. A natureza intencional do gesto, em todo caso, se torna mais clara a medida que o rapaz começa a cantar; primeiro, baixinho e em crescendo até que ganhem definição os significados que ali se veiculam:

“Eu sou ladrão! Eu sou ladrão! E você não pode nada!” - A melodia remete inequivocamente ao gênero de funk associado, em grande medida, às favelas da cidade - “Se eu quisesse eu ia aí e pegava a tua bolsa! - sem rima ou estrutura definida, apenas melodia e palavra como se quisesse com aquilo configurar uma indefinição estratégica entre o canto e o discurso objetivo. E retornava e prosseguia, até que um ritmo particular começasse a tomar forma na repetição induzida à maneira de um leitmotiv: - “Eu sou ladrão! Eu sou ladrão!...”

A mulher, já consciente da presença daquele que antes não era senão um fantasma, tensionou os braços cruzados, fincando as mãos por entre as axilas, de modo a certificar-se da segurança com que matinha a bolsa presa, pelas alças - ao redor de um dos ante-braços. De uma ingenuidade obtusa, no entanto. O ladrão de fato, não é aquele que anuncia sua presença, declarando com palavras – do contrário - a ausência da intenção para o roubo. Da contradição evidente, então, desenrolava-se uma ficção bastante original; marcadamente irônica e carregada de um simbolismo o qual apenas o contexto poderia fazer tornar-se inteligível.

A imagem da bolsa protegida se dirigia ao pobre passageiro como uma declaração sub-reptícia e, em última instância, uma ofensa. Assim como o olhar dele, fixo e intimidador, se desprendia em resposta como num jogo de significados em que nada era em ato, mas, ao contrário, tudo era sugestão. Na exegese do rapaz, a precaução da mulher fazia menção a si ou, pelo menos, ao lugar por ele ocupado naquele cenário indistinto; do mesmo modo como interpretava ela sua própria segurança a partir da tensão acumulada entre os braços e em defesa da bolsa. Mas porque não houvesse seu olhar chamado atenção da moça – e apesar de toda a intensidade em que culminavam aqueles olhos ocupados, o silêncio é justamente aquilo que faz do olhar uma voz a espreita – viu-se impelido a tornar audíveis as palavras que até então não estavam senão implícitas. Assim procedendo, no entanto, inaugurava o garoto um novo regime para o discurso, forçando o diálogo como um cantor de ópera que se impõe a seu público a plenos pulmões. E como na ópera, comprometia-se menos com a realidade que com a forma com a qual tratava seu tema - uma receita comum a quase todos os fenômenos que se inauguram em um regime estético.

Mas nem por isso, se podia dizer que não houvesse ali um interprete preocupado em compensar a fragilidade diegética da performance, com o apelo humanizado de quem incorpora os sentimentos que deseja expressar em uma segunda camada não tanto involuntária quanto intencional, ou seja, não como aquele que sente, mas como aquele que inventa e faz, por isso, do sentimento uma razão inequívoca, notável era o tom ameaçador com que sua música seguia a melodia pouco prodigiosa em curso. O volume induzido, portanto, era apenas aquele necessário para fazer-se ouvido pela mulher e mais um ou dois transeuntes atentos a volta, como aquele que testemunhava a encenação.

Para a mulher, a quem parecia importar menos a forma que o conteúdo explicitamente evocado, o terror tornava-se nota em destaque, porque sob a nódoa da ficção escondia-se então uma realidade em potência, em que se fazia vibrar dos sentimentos a espera antes o medo que um regozijo qualquer diante da beleza dos traços originais de uma peça como aquela.

A quem, no entanto, observava a distância os detalhes e casuais ornamentos como signos da obra em processo - reconhecendo não apenas o drama em relevo como a interpretação acabada, que sonora e expressivamente ressaltavam do artista a marca de uma kunstwollen feita evidente, enxergando não somente a técnica, mas principalmente a inteligência com a qual o autor se tornava o veículo de uma poderosa crítica a sociedade em questão – , e porque não houvesse aparato institucional algum dando contexto ao dispêndio de gritos de louvor e aplausos, restava apenas o elogio interiorizado da contemplação em retorno.


A arte é a forma magistral pela qual, ao atentarem uns aos outros os indivíduos de um mesmo contexto, assumem-se na ignorância mútua de suas razões profundas no momento mesmo em se desfazem dos julgamentos precipitados em nome de uma consideração segunda, para finalmente perceberem que o significado pleno da ação está na simples atenção que se dirige a ela.