domingo, 21 de fevereiro de 2016

Quarta-feira de um tom mais escuro

Depois da tempestade, o precipício.

Assim descrevia o sentimento que o ocupava logo após cessarem os entusiasmos que o haviam impulsionado durante todo o carnaval. Quando aquela alegria incontornável, catártica, desproporcionada, não habitava mais seu peito e no lugar deixava apenas espaço; uma cavidade profunda que pedia tão somente ocupação imediata.

Perguntava-se sobre si mesmo, sobre a natureza do gozo carnavalesco que se dispunha pulsante em seu corpo minutos antes, e que ainda agora pulsava em outros corpos, os quais podia ele nesse momento observar, não sem alguma inveja, mas, sobretudo, com a indiferença de quem olha fixo um retrato e sabe que não se trata de nenhum espelho. Os primeiros raios de luz do dia, no entanto, ofereciam clareza e um brilho singular ao cenário do qual se retirava ele agora, e era justamente entre a indiferença e a inveja que se alternavam um movimento decidido de evasão e um reflexo auto-projetado de si na imagem da qual ele já não devia mais fazer parte. Quando cessava o brilho, porque não incidisse a luz num certo instante diretamente, restava apenas a clareza diurna através da qual se revelavam as imperfeições das máscaras customizadas, as costuras expostas das fantasias mais minuciosamente fabricadas, o desajuste dos elaboradíssimos chapéus nas cabeças cambaleantes por folga ou estreiteza da sua abertura em relação a cabeça que a vestia, o cansaço ardente no rosto da menina ainda impregnada pela festa, pela dança e pelos desejos seus ocultos – quaisquer que fossem.
Pois na exposição tão crua dos artifícios e ficções que imantavam aquela festa de um ar característico de fábula é que nascia a percepção de seu fim - já quando fim e percepção do fim eram uma e a mesma sentença. E como todas as coisas que são, apenas quando e conforme são, também o carnaval se presta a essa dinâmica particular em que toda a descrição é fantasia, porque quando se descreve, já não é; e quando chega de fato ao final é já outra coisa – e antes dela apenas um campo de possibilidades que a memória articula como quem maneja um álbum de fotografias.

Precisou afastar-se daquela gente, pois da diáfana compreensão de que já não fazia parte do instante. Quis mesmo acreditar que seu caminho seguiria, a partir dali, sua vontade e tão somente a sua vontade, mas não podia ignorar a sensação de que fora deixado de lado, excluído quando prontamente deixara de ser um deles para tornar-se outra coisa. A agitação dos corpos em sincronia deu lugar à marcha individual, e onde se contorcia o desejo incontrolável de mexer-se, refração do contágio festivo a que dá nome o carnaval, insinuava-se agora apenas o aspecto funcional do movimento pendular que leva de um lugar ao outro por mera necessidade e ocasião.

Pelo caminho, no entanto, a memória seguia ativa e capturava com participação diligente cada figura que iria compor esse retrato do encerramento. O encantamento residual de uma mágica que depende das proezas do corpo – "o corpo que agora falha", dizia a legenda.

Havia aqueles ainda excitados, mas nesse momento estes serviam já apenas de moldura para a pintura que descreviam os ânimos em declínio. Afinal, não se tratava de uma descrição pictórica qualquer do carnaval, mas sobre o seu fim. E quanto mais afastavam-se o som dos surdos e das caixas, das vozes e dos metais, mais protagonizavam o espaço vazio e os dejetos de orgias sem nome; e conforme os resquícios da festa em movimento desapareciam no silêncio da rua, a melancolia do trajeto dava lugar ao desespero e a ansiedade pela chegada ao destino. Sentia-se, o ex-folião, cada vez mais abandonado por aquelas milhares de pessoas à quem havia ele dado o melhor de si durante as últimas horas da sua vida, mas sobre cujo pertencimento dizia respeito apenas à sua memória e não às delas, provavelmente. Não havia uma sequer alma ouvindo o apelo cantado em versos de marchas sem rima daquele um que agora carregava sobre os ombros apenas sua própria consciência - morada de uma personalidade irremediavelmente sóbria e solitária.

No chão, gradualmente, apareciam os despejos casuais da massa e, de repente, despejos menos casuais: Corpos humanos. Um, depois outro e mais outro. Cada um deles carregava consigo o aspecto geral de uma condição que era para a consciência que os reconhecia inconciliável com a ideia do que deveriam ser corpos humanos, posto que o termo, para esta, deveria descrever um contexto absolutamente diverso daquele exposto. Assim, não se pôde reconhecer, num primeiro instante, em nenhum deles, e ainda que o cansaço lhe subisse pelo pescoço e lhe quisesse roubar todo o movimento do corpo, não seria possível que fosse ele e seu corpo no chão, porque nele perdurava, sem ressalvas, aquela estrutura construída ao longo de seus alguns anos sob a alcunha de alguma dignidade, que exercia não apenas com o corpo, mas com todo o arranjo dos gestos possíveis; que se exibia não apenas nos olhos abertos, mas nas roupas, no cabelo e nas unhas cortadas. Algum tratamento especialíssimo, percebia agora, o havia dotado de um sentido e um patrimônio de si que pareciam de todo ausentes naquelas figuras ali largadas; deitadas sobre o concreto das calçadas ou mesmo entre o meio fio e a rua, como se a pele acostumada estivesse a dureza particular daquele solo, como se conforto fosse uma palavra sem ordem e de sentido perdido nas ilusões de algum mercado que lhes era, sobretudo, alheio.

Mas os corpos em exaustão ressaltavam uma nota particular em razão: eram seres humanos e, aquela, a consequência dos seus excessos. Mas e os excessos daquele que observava, por que levavam tão criteriosamente a consequências diversas? Perguntou-se, finalmente, pois a honestidade era também parte daquela estrutura chamada dignidade: “O que nos diferencia?” E a resposta saltava-lhe aos olhos. Apenas entre o tecido das roupas e a pele que estas cobriam, uma dezena de características separavam aos olhos atentos os corpos estendidos ao chão daquele que caminhava judicioso. A partir da pele e adentro, no entanto, muito pouco devia-se encontrar que os diferenciasse - o sangue devia ser úmido e vermelho como o dele, os órgãos cumpriam, provavelmente, funções similares às dos seus e os ossos deles mediam-se por dureza análoga a dos ossos que o mantinham naquele instante de pé. Seria, então, a química artificial que incendiara aqueles corpos horas antes muito diversa da que nele ainda corria, querendo se extinguir sobre um colchão macio em ambiente silencioso e controlado ou da que corria no sangue dos outros que, ainda, atrás de si festejavam? Provavelmente. Como as vestes sobre o corpo e o corte de cabelo, também por dentro um tratamento mais cuidadoso e sofisticado, como as alegorias sobre a cabeça e penduradas ao redor do pescoço, resultava o encerramento da festa de modo diverso para aqueles e para aqueles outros ou para si. Assim, reconhecia-se no meio do caminho entre os corpos estirados e os corpos ainda em festa, mas sem poder identificar-se completamente nem com estes, nem com aqueles.

Quis ele, então, por um instante, voltar a ser apenas mais um entre os que festejavam. Mas para isso, seria necessário que deixasse de lado a consciência que agora determinava seu curso. Talvez fosse apenas uma questão da circunstância ou da falta de apelo. Quem sabe uma ocasião distinta não pudesse transpô-lo daquele quadro desesperançoso de humanidade em questionamento e projetá-lo novamente ao reino encantado dos foliões? Era certamente o corpo em esvanecimento, contudo, que dava lugar a consciência criteriosa e que também o alertava para o caso de que é terrivelmente fácil julgar uma multidão, dizer-se um “eu” entre os “eles”, sem ter acesso ao enredo individual e aos pensamentos, ainda que de lucidez residual, que balançam com aqueles corpos em ecstase. Se lhe fosse permitido invadir a consciência privada de cada um deles, certamente encontraria em um e outro disposição mais aguerrida a reclamar contra aqueles privilégios, pois é também um direito a eles garantido – e privilégio maior entre os privilégios – reconhecer e questionar a dinâmica da história que produzia um tal contraste e desumanizava os corpos outros que agora pendiam pelas sujas ruas. Mas como o seu acesso se limitava aquilo que lhe proporcionavam seus olhos e ouvidos, podia apenas reconhecer a alienação geral a tudo que não tinha o aspecto sumptuoso da alegria e do prazer.

A sua consciência, no entanto, pedia tão somente que terminasse a festa – e se explicava: a grande e mais cruel capacidade humana é a de suportar que haja corpos aos quais se entrega tamanho apreço, e outros que se confundam no lixo dos resíduos carnavalescos. Porque são corpos como esses os que se emprestam a função de cadáver quando ao invés do carnaval traça-se um retrato medido da guerra.

O ex-folião se preparava, assim, para uma nova festa, enquanto colhia o cenário a volta entre adjetivos descolados e frases de efeito. A fantasia mais desatinada - costurava o estilo como num golpe coreografado de acomodada autocrítica - é ser aquele que escreve; o que julga e condena, de um lado, e aproveita, do outro, os deleites da posição que ora ocupa. E essa máscara ostentosa que o narrador veste sobre seu rosto enquanto seus olhos vasculham pela memória as cenas possíveis de uma crônica ensaiada - e cheia das suas assertivas morais – disfarça tão bem seu caráter sob um entulho de virtudes humanas quaisquer, que faz da história contada seu próprio carnaval.


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