sexta-feira, 25 de novembro de 2016

O Meio é a Mensagem ou Hermes Pede Passagem

Caminho sobre a calçada numa rua que segue à minha frente: reta até o último centímetro de concreto que, contra as solas emborrachadas dos meus sapatos gastos, confessa-me a dureza inegociável da sua matéria.

No final dela, à distância, vindo lentamente em minha direção, uma senhora negra de idade avança apenas um pouco mais que absolutamente normal. Cabelo, calça e sandálias reiteram as convenções mais normativas de gênero, idade e classe social possíveis; e em todas elas, fragilidade é a nota comum em destaque. Na camiseta, no entanto, apesar do tecido e recorte ordinários, uma mensagem em relevo perturba o enredo que querem contar outros detalhes: “Strong is sexy”.

Ela segue o caminho e está prestes a passar por mim. Meus olhos vagam da leitura inesperada até seus olhos serenos, que me fitam. Sorrimos um para o outro em sincronia tão justa que é difícil identificar quem primeiro desatou estes nós invisíveis que impedem os gestos da face na ordem da brutalidade e frieza da máquina social.

Mas ainda que eu lhes possa confessar – sem orgulho algum – que o meu sorriso, então, nascia da contradição em vista e de seu potencial desdobramento literário, do sorriso dela posso apenas especular - Afinal, desconfiava ela da dimensão semântica do meu? Ou a camiseta sobre o seu torso era a ela indiferente como era a sua pele em relação aos fonemas ali grafados?

Olhei para trás uma última vez - a decifração de um enigma pede ao pescoço alguma flexibilidade. Nas costas que a agora se via, sensivelmente curvadas, nenhuma palavra à vista. Mas no andar vagaroso, passo a passo, uma constância robusta e cheia de significado. A rua era a linha que dava a senhora a magnitude de uma sentença, como a linha imaginária que dava àquelas letras de antes contexto e sentido. Porque a verdade não habita a mensagem; e se nasce na voz do mensageiro investido, revela-se apenas na consciência de um destinatário. Strong is sexy, e nunca houve razão alguma pra se duvidar.  

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O Guarani

O barulho do ar que escapa - como resultado da descompressão que regula o funcionamento do ônibus quando este pára e abre as portas – chama atenção do pedestre que segue distraído. Entram os últimos e o veículo fecha as portas enquanto o ônibus permanece parado devido ao engarrafamento que enfileira dezenas de automóveis naquela Rua do Passeio, já quase em frente a Escola de Música da UFRJ.

Uma panorâmica: da calçada, é possível ver toda a extensão lateral do veículo, com suas janelas dispostas de modo a convidar diálogos soturnos entre os passageiros que habitam tais posições e os outros que esperam no ponto. O olhar fixo de um garoto na parte de trás do ônibus chama atenção: ele recai sobre a figura de uma senhora que, com os braços cruzados, mantém firme a bolsa pendurada em um deles. A mulher ignora a presença do menino que se faz sentir cada vez mais a medida que a atenção do espectador delineia a cena. O menor, preto e em cujos trajes (ainda que em relação apenas àquilo que se dispunha a vista) se identifica uma condição social definida, encara uma mulher na idade de seus, talvez, 50 anos, vestida como que atenta ao escrutínio social que a cerca. Não se pode dar a ela, precisamente, um contorno de classe, e o fato de que ela espera em um ponto de ônibus redimensiona a desconfiança do avaliador, que a primeira vista identificaria naquelas roupas dela o traço residual de um privilégio, ainda que relativo.

Num primeiro momento, entende-se que se trata de um olhar de intimidação pelo simples fato de que o olhar que ele dirige a ela não cessa e não quer cessar. A natureza intencional do gesto, em todo caso, se torna mais clara a medida que o rapaz começa a cantar; primeiro, baixinho e em crescendo até que ganhem definição os significados que ali se veiculam:

“Eu sou ladrão! Eu sou ladrão! E você não pode nada!” - A melodia remete inequivocamente ao gênero de funk associado, em grande medida, às favelas da cidade - “Se eu quisesse eu ia aí e pegava a tua bolsa! - sem rima ou estrutura definida, apenas melodia e palavra como se quisesse com aquilo configurar uma indefinição estratégica entre o canto e o discurso objetivo. E retornava e prosseguia, até que um ritmo particular começasse a tomar forma na repetição induzida à maneira de um leitmotiv: - “Eu sou ladrão! Eu sou ladrão!...”

A mulher, já consciente da presença daquele que antes não era senão um fantasma, tensionou os braços cruzados, fincando as mãos por entre as axilas, de modo a certificar-se da segurança com que matinha a bolsa presa, pelas alças - ao redor de um dos ante-braços. De uma ingenuidade obtusa, no entanto. O ladrão de fato, não é aquele que anuncia sua presença, declarando com palavras – do contrário - a ausência da intenção para o roubo. Da contradição evidente, então, desenrolava-se uma ficção bastante original; marcadamente irônica e carregada de um simbolismo o qual apenas o contexto poderia fazer tornar-se inteligível.

A imagem da bolsa protegida se dirigia ao pobre passageiro como uma declaração sub-reptícia e, em última instância, uma ofensa. Assim como o olhar dele, fixo e intimidador, se desprendia em resposta como num jogo de significados em que nada era em ato, mas, ao contrário, tudo era sugestão. Na exegese do rapaz, a precaução da mulher fazia menção a si ou, pelo menos, ao lugar por ele ocupado naquele cenário indistinto; do mesmo modo como interpretava ela sua própria segurança a partir da tensão acumulada entre os braços e em defesa da bolsa. Mas porque não houvesse seu olhar chamado atenção da moça – e apesar de toda a intensidade em que culminavam aqueles olhos ocupados, o silêncio é justamente aquilo que faz do olhar uma voz a espreita – viu-se impelido a tornar audíveis as palavras que até então não estavam senão implícitas. Assim procedendo, no entanto, inaugurava o garoto um novo regime para o discurso, forçando o diálogo como um cantor de ópera que se impõe a seu público a plenos pulmões. E como na ópera, comprometia-se menos com a realidade que com a forma com a qual tratava seu tema - uma receita comum a quase todos os fenômenos que se inauguram em um regime estético.

Mas nem por isso, se podia dizer que não houvesse ali um interprete preocupado em compensar a fragilidade diegética da performance, com o apelo humanizado de quem incorpora os sentimentos que deseja expressar em uma segunda camada não tanto involuntária quanto intencional, ou seja, não como aquele que sente, mas como aquele que inventa e faz, por isso, do sentimento uma razão inequívoca, notável era o tom ameaçador com que sua música seguia a melodia pouco prodigiosa em curso. O volume induzido, portanto, era apenas aquele necessário para fazer-se ouvido pela mulher e mais um ou dois transeuntes atentos a volta, como aquele que testemunhava a encenação.

Para a mulher, a quem parecia importar menos a forma que o conteúdo explicitamente evocado, o terror tornava-se nota em destaque, porque sob a nódoa da ficção escondia-se então uma realidade em potência, em que se fazia vibrar dos sentimentos a espera antes o medo que um regozijo qualquer diante da beleza dos traços originais de uma peça como aquela.

A quem, no entanto, observava a distância os detalhes e casuais ornamentos como signos da obra em processo - reconhecendo não apenas o drama em relevo como a interpretação acabada, que sonora e expressivamente ressaltavam do artista a marca de uma kunstwollen feita evidente, enxergando não somente a técnica, mas principalmente a inteligência com a qual o autor se tornava o veículo de uma poderosa crítica a sociedade em questão – , e porque não houvesse aparato institucional algum dando contexto ao dispêndio de gritos de louvor e aplausos, restava apenas o elogio interiorizado da contemplação em retorno.


A arte é a forma magistral pela qual, ao atentarem uns aos outros os indivíduos de um mesmo contexto, assumem-se na ignorância mútua de suas razões profundas no momento mesmo em se desfazem dos julgamentos precipitados em nome de uma consideração segunda, para finalmente perceberem que o significado pleno da ação está na simples atenção que se dirige a ela.





sexta-feira, 25 de março de 2016

A Compensação



Tomei de volta as palavras

do poema que escrevi para ti.

Desculpe-me.

Deixo-te estas: que sou um babaca egocentrico.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Quarta-feira de um tom mais escuro

Depois da tempestade, o precipício.

Assim descrevia o sentimento que o ocupava logo após cessarem os entusiasmos que o haviam impulsionado durante todo o carnaval. Quando aquela alegria incontornável, catártica, desproporcionada, não habitava mais seu peito e no lugar deixava apenas espaço; uma cavidade profunda que pedia tão somente ocupação imediata.

Perguntava-se sobre si mesmo, sobre a natureza do gozo carnavalesco que se dispunha pulsante em seu corpo minutos antes, e que ainda agora pulsava em outros corpos, os quais podia ele nesse momento observar, não sem alguma inveja, mas, sobretudo, com a indiferença de quem olha fixo um retrato e sabe que não se trata de nenhum espelho. Os primeiros raios de luz do dia, no entanto, ofereciam clareza e um brilho singular ao cenário do qual se retirava ele agora, e era justamente entre a indiferença e a inveja que se alternavam um movimento decidido de evasão e um reflexo auto-projetado de si na imagem da qual ele já não devia mais fazer parte. Quando cessava o brilho, porque não incidisse a luz num certo instante diretamente, restava apenas a clareza diurna através da qual se revelavam as imperfeições das máscaras customizadas, as costuras expostas das fantasias mais minuciosamente fabricadas, o desajuste dos elaboradíssimos chapéus nas cabeças cambaleantes por folga ou estreiteza da sua abertura em relação a cabeça que a vestia, o cansaço ardente no rosto da menina ainda impregnada pela festa, pela dança e pelos desejos seus ocultos – quaisquer que fossem.
Pois na exposição tão crua dos artifícios e ficções que imantavam aquela festa de um ar característico de fábula é que nascia a percepção de seu fim - já quando fim e percepção do fim eram uma e a mesma sentença. E como todas as coisas que são, apenas quando e conforme são, também o carnaval se presta a essa dinâmica particular em que toda a descrição é fantasia, porque quando se descreve, já não é; e quando chega de fato ao final é já outra coisa – e antes dela apenas um campo de possibilidades que a memória articula como quem maneja um álbum de fotografias.

Precisou afastar-se daquela gente, pois da diáfana compreensão de que já não fazia parte do instante. Quis mesmo acreditar que seu caminho seguiria, a partir dali, sua vontade e tão somente a sua vontade, mas não podia ignorar a sensação de que fora deixado de lado, excluído quando prontamente deixara de ser um deles para tornar-se outra coisa. A agitação dos corpos em sincronia deu lugar à marcha individual, e onde se contorcia o desejo incontrolável de mexer-se, refração do contágio festivo a que dá nome o carnaval, insinuava-se agora apenas o aspecto funcional do movimento pendular que leva de um lugar ao outro por mera necessidade e ocasião.

Pelo caminho, no entanto, a memória seguia ativa e capturava com participação diligente cada figura que iria compor esse retrato do encerramento. O encantamento residual de uma mágica que depende das proezas do corpo – "o corpo que agora falha", dizia a legenda.

Havia aqueles ainda excitados, mas nesse momento estes serviam já apenas de moldura para a pintura que descreviam os ânimos em declínio. Afinal, não se tratava de uma descrição pictórica qualquer do carnaval, mas sobre o seu fim. E quanto mais afastavam-se o som dos surdos e das caixas, das vozes e dos metais, mais protagonizavam o espaço vazio e os dejetos de orgias sem nome; e conforme os resquícios da festa em movimento desapareciam no silêncio da rua, a melancolia do trajeto dava lugar ao desespero e a ansiedade pela chegada ao destino. Sentia-se, o ex-folião, cada vez mais abandonado por aquelas milhares de pessoas à quem havia ele dado o melhor de si durante as últimas horas da sua vida, mas sobre cujo pertencimento dizia respeito apenas à sua memória e não às delas, provavelmente. Não havia uma sequer alma ouvindo o apelo cantado em versos de marchas sem rima daquele um que agora carregava sobre os ombros apenas sua própria consciência - morada de uma personalidade irremediavelmente sóbria e solitária.

No chão, gradualmente, apareciam os despejos casuais da massa e, de repente, despejos menos casuais: Corpos humanos. Um, depois outro e mais outro. Cada um deles carregava consigo o aspecto geral de uma condição que era para a consciência que os reconhecia inconciliável com a ideia do que deveriam ser corpos humanos, posto que o termo, para esta, deveria descrever um contexto absolutamente diverso daquele exposto. Assim, não se pôde reconhecer, num primeiro instante, em nenhum deles, e ainda que o cansaço lhe subisse pelo pescoço e lhe quisesse roubar todo o movimento do corpo, não seria possível que fosse ele e seu corpo no chão, porque nele perdurava, sem ressalvas, aquela estrutura construída ao longo de seus alguns anos sob a alcunha de alguma dignidade, que exercia não apenas com o corpo, mas com todo o arranjo dos gestos possíveis; que se exibia não apenas nos olhos abertos, mas nas roupas, no cabelo e nas unhas cortadas. Algum tratamento especialíssimo, percebia agora, o havia dotado de um sentido e um patrimônio de si que pareciam de todo ausentes naquelas figuras ali largadas; deitadas sobre o concreto das calçadas ou mesmo entre o meio fio e a rua, como se a pele acostumada estivesse a dureza particular daquele solo, como se conforto fosse uma palavra sem ordem e de sentido perdido nas ilusões de algum mercado que lhes era, sobretudo, alheio.

Mas os corpos em exaustão ressaltavam uma nota particular em razão: eram seres humanos e, aquela, a consequência dos seus excessos. Mas e os excessos daquele que observava, por que levavam tão criteriosamente a consequências diversas? Perguntou-se, finalmente, pois a honestidade era também parte daquela estrutura chamada dignidade: “O que nos diferencia?” E a resposta saltava-lhe aos olhos. Apenas entre o tecido das roupas e a pele que estas cobriam, uma dezena de características separavam aos olhos atentos os corpos estendidos ao chão daquele que caminhava judicioso. A partir da pele e adentro, no entanto, muito pouco devia-se encontrar que os diferenciasse - o sangue devia ser úmido e vermelho como o dele, os órgãos cumpriam, provavelmente, funções similares às dos seus e os ossos deles mediam-se por dureza análoga a dos ossos que o mantinham naquele instante de pé. Seria, então, a química artificial que incendiara aqueles corpos horas antes muito diversa da que nele ainda corria, querendo se extinguir sobre um colchão macio em ambiente silencioso e controlado ou da que corria no sangue dos outros que, ainda, atrás de si festejavam? Provavelmente. Como as vestes sobre o corpo e o corte de cabelo, também por dentro um tratamento mais cuidadoso e sofisticado, como as alegorias sobre a cabeça e penduradas ao redor do pescoço, resultava o encerramento da festa de modo diverso para aqueles e para aqueles outros ou para si. Assim, reconhecia-se no meio do caminho entre os corpos estirados e os corpos ainda em festa, mas sem poder identificar-se completamente nem com estes, nem com aqueles.

Quis ele, então, por um instante, voltar a ser apenas mais um entre os que festejavam. Mas para isso, seria necessário que deixasse de lado a consciência que agora determinava seu curso. Talvez fosse apenas uma questão da circunstância ou da falta de apelo. Quem sabe uma ocasião distinta não pudesse transpô-lo daquele quadro desesperançoso de humanidade em questionamento e projetá-lo novamente ao reino encantado dos foliões? Era certamente o corpo em esvanecimento, contudo, que dava lugar a consciência criteriosa e que também o alertava para o caso de que é terrivelmente fácil julgar uma multidão, dizer-se um “eu” entre os “eles”, sem ter acesso ao enredo individual e aos pensamentos, ainda que de lucidez residual, que balançam com aqueles corpos em ecstase. Se lhe fosse permitido invadir a consciência privada de cada um deles, certamente encontraria em um e outro disposição mais aguerrida a reclamar contra aqueles privilégios, pois é também um direito a eles garantido – e privilégio maior entre os privilégios – reconhecer e questionar a dinâmica da história que produzia um tal contraste e desumanizava os corpos outros que agora pendiam pelas sujas ruas. Mas como o seu acesso se limitava aquilo que lhe proporcionavam seus olhos e ouvidos, podia apenas reconhecer a alienação geral a tudo que não tinha o aspecto sumptuoso da alegria e do prazer.

A sua consciência, no entanto, pedia tão somente que terminasse a festa – e se explicava: a grande e mais cruel capacidade humana é a de suportar que haja corpos aos quais se entrega tamanho apreço, e outros que se confundam no lixo dos resíduos carnavalescos. Porque são corpos como esses os que se emprestam a função de cadáver quando ao invés do carnaval traça-se um retrato medido da guerra.

O ex-folião se preparava, assim, para uma nova festa, enquanto colhia o cenário a volta entre adjetivos descolados e frases de efeito. A fantasia mais desatinada - costurava o estilo como num golpe coreografado de acomodada autocrítica - é ser aquele que escreve; o que julga e condena, de um lado, e aproveita, do outro, os deleites da posição que ora ocupa. E essa máscara ostentosa que o narrador veste sobre seu rosto enquanto seus olhos vasculham pela memória as cenas possíveis de uma crônica ensaiada - e cheia das suas assertivas morais – disfarça tão bem seu caráter sob um entulho de virtudes humanas quaisquer, que faz da história contada seu próprio carnaval.


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Aquele era um escritor cansado da poesia. Cansado dos lirismos e da música que invadiam as letras e faziam o leitor desarmado esquecer que era a vida real aquilo que lia; que era seca, amargurante a notícia e que, repleta das futilidades, faziam-no uma vez mais virar os olhos para o sem importância ou o insignificante. Aliás, quando foi que a poesia descreveu tão bem a realidade, que fosse possível vê-las ao mesmo tempo, uma na outra, poesia e realidade? Seguindo essa pergunta sem resposta, ele definia agora, para ele mesmo, que nenhuma outra forma de escrita estaria justificada que não o grafismo da literalidade que o impendia no peito e nos olhos, diante de si no mundo; assim também seria no papel a sua frente, pois tudo o que, a partir dali, escrevesse, seria como os gritos de um animal em sacrifício, falando sua dor diretamente aos ouvidos presentes, pedindo clemência ao seu executor; ou como fotografias frontais de rosto em 3 por 4 dando como prova de existência de um rosto nada mais do que aquilo essencial; ou, ainda, como as pinturas de Lascaux, representações tão reais que o homem moderno não pôde enxergar nelas o computo de um pensamento inventivo ou a falácia de ficção mitológica alguma.

Sua primeira noticia estava ali, diante de si, crua como deveria ser a sua própria linguagem e assim ele seguia dando nota ao caso de um acidente que deixara orfã uma menina de 9 anos, quando a mãe, de quem dependia seu sustento e criação, morreu tragicamente eletrecutada por um cabo de alta tensão partido e mergulhado numa poça d´água no caminho da pobre mulher.

Teria continuado a descrição da notícia e concluído a nota de falecimento se não houvesse entrado em êcstase após ler aquelas duas palavras que apareceram em seu texto, retumbantes; ao mesmo tempo infâmes e plenas de vigor estético. A história que seguia curso nos fatos não tinha, para ele, ali, o sabor e a medida, inconciliáveis, daquela expressão de costume: “morreu tragicamente”. Haveria se sentido culpado por se prestar a uma experiência estética tal como aquela, não fosse a contradição tão absurda das palavras, que deveriam dar o tom brutal de terror, serem justamente aquelas que davam beleza mais viva ao texto.

Percebeu que seria um jornalista desumano se desse destaque aquelas duas palavras, deixando como pano de fundo o desamparo da menina cuja mãe havia acabado de falecer. Mas ao esteta, a notícia era em si apenas um adorno protocolar, um melisma costumeiro, pois era o efeito sonoro daquela expressão que fazia seu texto ecoar por trás dos olhos de quem lia.

Concluiu sua obra, então, com um título que dava novo sentido aquele texto conciso que ele recortou delicadamente da notícia lançada, agora, à gaveta – e assim ficou eternizada sua obra, na forma de uma crônica melancólica ou poesia incisiva, conforme a disposição e a psicologia particular de quem lesse:

“Vítima de um encanto fatídico: Morreu tragicamente.”