segunda-feira, 10 de agosto de 2015

O Bom Moço




Lei e moral são formas de uma mesma ideia ou ideias distintas em vista de um mesmo problema, como são os pássaros distintos em suas espécies a referência categórica ao mesmo animal. Não há como determinar a origem de algo senão em si, pois tudo o que antes de uma coisa qualquer se apresenta como sua causa, é, por isso mesmo, já uma outra coisa. Ao mesmo tempo, nada é sem que antes sua existência seja posta como possível.

Ao homem moral, muitas vezes, não há nas leis apelo que à sua consciência satisfaça. Do mesmo modo como são, amiúde, imorais as leis dos homens que, diante de circunstâncias muito particulares, impõem sua norma – pronta e acabada - àquilo que antes não era senão insondável.

Um homem dirige seu carro vermelho, popular, com as marcas pontuais do intenso uso. Ele trafega em baixa velocidade pelas ruas menos movimentadas no interior do bairro de São Cristóvão, quando é abordado à distância por um policial de pé, pedindo a ele que diminua a velocidade.

Ao aproximar-se, o policial indaga, antes mesmo de requerer que o motorista encoste: “Você sabia que placas terminadas em 3 deveriam ter realizado vistoria em julho?”. A fala do policial se condiciona à justificativa já implícita de que a placa do carro em questão assim se numera e de que o mês de julho é agora passado. De fato, o dia do acontecido é precisamente o terceiro do mês seguinte.

O homem acena fazendo menção ao fato de que tem conhecimento do calendário regulamentado de vistorias da agência que regula a circulação de veículos no Estado e encosta o carro, submetendo-se à requisição do policial - feita após a referida pergunta e logo depois de mandar embora outro carro de passeio que esperava ali encostado sob seu comando. Pede ao homem habilitação e documentos do carro, ainda antes que o carro esteja absolutamente parado. Ele estaciona, retira o sinto de segurança, levanta sutilmente o corpo e enfia a mão no bolso traseiro da calça, retirando de lá a carteira com a habilitação e o documento. Entrega-a ao policial que abre e lê com atenção, identificando que a última vistoria data de outubro do ano anterior.

- Sua vistoria deveria ter sido feita em julho. - Sentencia o policial com severidade. - Eu sei, - responde o homem.

- Por que, então, você não a fez? - Questiona em tom antes de curiosidade que de repreensão.

- Eu requeri o agendamento tarde demais e não consegui vagas para vistoria em julho. Minha vistoria agora está marcada para daqui a duas semanas. - Disse homem, não querendo se justificar pelo seu erro, mas tentando responder a pergunta do policial, que insatisfeito com a resposta, prossegue:

- Por que você não fez antes?

O homem - sem resposta a dar - julgou desonesto forjar alguma que de algum modo o desculpasse da sua falha e, uma vez sem resposta, levantou os ombros e contorceu o rosto, oferecendo ao policial apenas uma expressão de absoluta impotência diante da sua pergunta.

O policial guardou no bolso os documentos do homem e indicou que já havia chamado um reboque para o seu carro e que ele aguardasse alguns minutos, pois teria o carro e a habilitação retidos. O homem permaneceu em silêncio, sob resguardo da autoridade que empunhava o policial no exercício da sua função.

Não houve excessos e dos dois lados se via, o tempo todo, homens em face das obrigações que os impeliam. O homem havia desrespeitado as leis que circunscreviam aquele contexto, conduzindo o seu carro irregularmente pelas ruas do Rio de Janeiro. Mas da moral que agora o assaltava, pedia-se a ele que acatasse em silêncio as recomendações do policial. O policial, simplesmente, fazia seu trabalho, que consiste exatamente na observância geral do cumprimento da lei.

Os dois permanecem em silêncio por cinco minutos. O homem pensa no prejuízo que terá com os tramites da retirada do seu veículo e recuperação da sua licença. O policial se remói com a dúvida não solucionada pela ausência da resposta a sua pergunta. Ele provavelmente considera também com pesar o prejuízo que terá o homem, mas não pode deixar de lado as leis que orientam sua conduta e posição como oficial da justiça. Pergunta mais uma vez ao homem: "Por que você não fez a vistoria?" Indicando com o tom da voz alguma compaixão e lamento pela situação em que ora se encontra o homem.

O homem, ainda sem resposta, devolve-lhe apenas um pouco elaborado “não sei”. Mas ele na verdade sabe: Apenas acredita que a resposta, muito complexa para a medida da curiosidade de um outro na função que ocupa o policial, seria demasiado prolixa e transmitiria, de algum modo, a ideia de que tentaria ele desculpar-se pelo não cumprimento das suas obrigações diante da lei, forçando assim um diálogo à margem, em que ele poderia se beneficiar ilicitamente em face da condescendência possivelmente promíscua do policial.

Engole a seco aquela resposta, pois nem mesmo a sua autoridade é suficiente ali para arrancar do homem resposta mais elaborada e permanece em silêncio por mais cinco minutos, aflito e tensionado entre o cumprimento do dever e a compaixão por um homem cujo o único crime fora o atraso.

A lei é objetiva: Estabelece aquilo que é, enquanto resultado de ações individuais, e como deve ser, a partir das punições previstas àqueles cujas ações procedem em descumprimento das normas. A moral é sensível: Pode o policial compadecer-se com a infelicidade do transgressor, reconhecendo haver ali punição demasiada para crime tão pouco danoso.

O policial se aproxima mais uma vez e pergunta ao homem: “O que você faz?”

- Sou professor – responde. 
- Professor de que? 
- História... – e suprimiu no último instante, mas intencionalmente, a palavra “arte” que, assim, designaria de forma mais precisa sua disciplina de atuação, porque julgou que tal pormenor nada acrescentaria em perspectiva àquele diálogo. Para o policial, um professor de história ou um professor de história da arte se deveriam orientar pelas mesmas obrigações e deveriam valer a eles os mesmos direitos.

O policial fez uma breve pausa e olhou para os lados, inconsolado com a decisão que estava em vias de tomar, qual seja a de liberar o homem, indulgentemente, contrariando suas convicções mais distintas diante da lei em face de alguma convicção moral mais fundamental que aquelas.

Entregou os papéis a ele e disse: “Pode ir, não vou mais tomar o seu tempo”.

O homem, aliviado, entrou no carrou; partiu otimista e disposto a regularizar sua situação o mais prontamente possível em respeito ao amabilíssimo gesto que acabara de presenciar. Pois se as leis produzem homens da justiça tão plenos de consciência moral como aquele, devem elas se sustentar em razão subjacente mais profunda que o simples apreço pela norma.