sexta-feira, 24 de abril de 2015

As cinzas de Melanie



Não há introdução mais oportuna ao orador que o silêncio.

Porque o silêncio reforça a responsabilidade do ouvinte ou, simplesmente, porque dissimula a responsabilidade do que fala. Esse traquejo do versador presente também faz recair sobre os ombros do que ouve qualquer culpa pela qual não seja o discurso justificado ou eficiente.

O silêncio é também um recurso engenhoso que sibila no interstício entre a visão e a memória, lá onde ecoa uma voz noturna que se desdobra a partir da voz muda e transparente daquele que lê. Pois, é essa voz fantasma que ressoa soberana quando o mundo disponível a volta precisa resumir-se ao texto que enfrenta; não há espaço para ruídos nem mesmo imaginados; a linguagem é um campo de virtuosidade tão plena, que faz da memória meramente um instrumento peculiar.

O chefe de um Estado democrático tanto quanto o ditador implacável; o padrinho que toma a palavra no brinde tanto quanto aquele ocupado com o panegírico de uma alma em retirada; o mágico, o palhaço, o amante ou amigo em desabafo, a aeromoça em demonstração, o cineasta; todos pedem o silêncio diante de si, porque sobre essa solenidade edificam a dignidade de sua arte; o professor, esse homem que se acostumou com os privilégios da posição que ocupa e teme olhar no espelho e enxergar apenas uma autoridade vazia, como as insígnias de um capitão em tempos de paz; após o sonoro e triunfante silêncio, essas crianças diante da autoridade irão celebrar cada palavra alçada simplesmente porque o silêncio um segundo antes fez delas palavras de mérito.

Mas o silêncio, legitimador absoluto da eminência do enunciador, é também um vilão a espreita. Pois se o ouvido deseja e espera um só ruído diante si, o silêncio é como um acorde dominante que espera sem sucesso um tom que o resolva. Pois ao desejo silencioso, o silêncio não é senão frustração.

Mas não pense você que este é um trato sobre o silêncio, pois não é. Se fiz do silêncio introdução foi porque o tema requeria um tal ornamento. Por razão da importância dessas memórias, pedi o respeito em medida, que aqui não se teria apenas com o silêncio bruto da folha em branco; fiz então do silêncio narrado o símbolo oportuno.

Mas memórias também não se deitam aqui por puro acaso e a tristeza que você reconhece ou reconhecerá na melodia que agora ecoa e se espalha orquestradamente ao redor dessas palavras, é a minha tristeza, bem como as memórias com as quais ela se ocupa... ausências que justificativa alguma poderia saldar.

Ainda assim, não há morte que se reconheça neste manifesto. É a vida que segue onipresente e porque seja a morte uma impossibilidade literária, como é para uma consicência viva impossível tomar da morte senão os símbolos e jamais a dinâmica dos fatos, você não verá sangue, aqui; não ouvirá a narrativa de um acidente fatal; muito menos irá testemunhar a descrição de um cadáver.

Quando eu era pequeno, morávamos em uma casa com um grande quintal frontal. A cerca que nos separava do vizinho não era suficientemente alta para manter afastado do nosso terreno o seu galo. Um enorme galo - com esporas longas e pontíagudas - que de tempos em tempos atravessava e montava guarda em frente a nossa casa, no quintal entre a porta e o portão externo. Quando acontecia, ficávamos presos dentro da casa, aterrorizados com a postura ameaçadora do animal, que, conquanto fosse ainda menor que o menor de nós, mantinha-se ereto e em posição de ataque, insinuando investir contra um de nós sempre que um passo a frente ou a cabeça enfiada pelo vão da porta fazia menção a atravessarmos o quintal até a saída. Recolhíamo-nos em abrigo e esperávamos o galo partir, para seguir nossas vidas em mais um dia escolar ordinário.

Contei essa história a mim mesmo inúmeras vezes depois disso, mas o medo que aquela cena fez surtir na origem deu lugar a meras risadas, ainda que eu tenha me furtado aqui ao tom anedótico que, percebo, agora, passados os anos, convém ao caso. Mas não sendo mais possível reconhecer o medo nascente no coração da criança diante de animal tão insignificante em tamanho e anatomia, sou obrigado a supor que o medo que me afligia era de outra natureza. Talvez, o de chegar à escola e enfrentar, finalmente, a insignificância do discurso que se lançava a nós como o de um promissor futuro; ou a ideia de que seguíriamos pelos anos a fio e todo aquele comprometimento apenas para sermos mais ou menos o que já éramos ou simplesmente a sombra de nossos modelos instituídos; uma versão a mais daquela figura em cuja autoridade se espelhava o melhor dos mundos possíveis a nossa frente.

Mas é provável que em idade tão tenra eu ainda não tivesse um juizo tal empunhado. O medo devia então ser de natureza ainda outra. Apenas o que sei é que parece impossível agora conciliar esses dois sentimentos, o sentimento real e o que se recolhe à memória. Duas criaturas tão diversas quanto o menino de antes e o homem de hoje, como o personagem opaco e o narrador detalhista, não podem compartilhar um sentimento mútuo, ainda que os sentimentos diversos atendam pelo mesmo nome.

Certo dia, deixava-me guiar em ronda noturna suspeita por um colega um pouco mais velho, pulando de cerca em cerca nos terrenos da vizinhança, aparentemente sem rumo – o rumo havia e estava por ele traçado, apenas eu o desconhecia. O tamanho das cercas, veja você, não era problema. Se um galo de não mais que alguns centímetros era capaz de transpor a barreira que aqueles emaranhados de arame ofereciam, não seria diferente para nós com nossos corpos leves e flexíveis de crianças da terra. Para minha surpresa, paramos em frente ao pequeno viveiro onde dormiam as aves da vizinha. Meu colega vasculhava aquelas gaiolas em busca de algo em particular. Eu reconheci o galo sentado, silencioso e indefeso no canto da jaula. Em uma gaiola ao lado, uma pequena codorna, que meu colega tomou em mãos com cuidado antes de seguirmos em retirada, deixando para trás o galo e a cena de um roubo.

Trata-se, todavia, de mais uma memória de cujo propósito nesse texto não se pode precisar a razão. Os sentimentos que agora projeto são turvos e confusos. Lembro-me de haver questionado o rapaz assim que chegamos a sua casa. Tenho a imagem da pequena cordorna sendo deixada em um banheiro de serviço que dava direto ao quintal na casa dele. Mas também lembro, um tanto vagamente, a autoridade que ele exercicia sobre mim pelo fato, talvez, de que fosse um pouco mais velho e maior, ainda que a autoridade do galo se tenha imposto sendo ele mesmo menor e mais novo. Tenho vivas, contudo, as duas imagens: a do galo recluso e impotente em sua gaiola e a do animal altivo e intimidador diante de mim, minha mãe e minhas irmãs.

Mudamos-nos alguns anos depois. Nunca mais vi o Galo. Mas um medo de sair de casa pela manhã me ocorre ainda hoje, sempre que um compromisso inexpressivo qualquer me conduz de casa e porta afora num dia de semana que se repete. É, ainda assim, um medo qualquer...

Soube que o Galo morreu, embora a notícia, tendo-a recebido mais de uma década depois de minha última experiência com o animal, fosse apenas uma confirmação lógica de uma condição imposta pela natureza àquela criatura. Mas eis o dado novo que se levantou apenas após o anúncio do vaticinio: aparentemente, a dona da ave achava graça das nossas batalhas mantinais pelo direito de ir e vir, de outro modo, a nós garantido pela constituição - e em particular no terreno de nossa residência - e, por isso mesmo, soltava o Galo pelas manhãs em conivência com o paternalismo galiforme do eminente algoz meu de infância. Mas sobre esse testemunho é também a memória de muitos anos que me oferece a visada. Entre os sentimentos que transparecem e se projetam - sem muita vida, contudo - esse figura apenas como um a mais na extensa coleção de minhas lembranças.

A dona do galo viria a morrer, também, alguns anos depois dessa confissão, mas sua morte não servirá de apoio a um qualquer sentimentalismo, simplesmente porque se trata de uma memória vazia de afeto. São, assim, os meus afetos que impõe o rítmo e quando, sobretudo, me empenho em salvaguardá-los do medo, tão iminente, de que seja tudo tempo perdido; de que essa história seja pura e simplesmente uma covarde espoliação do seu tempo - caro leitor -, enquanto eu, por puro despeito ou vaidade, roubo a sua atenção sem mérito e nada a oferecer, sem que galo algum se tenha posto entre nós e me impelido a fala; faço apenas porque é esse o medo que agora me assalta; tão somente por isso estendo ele a vocês na forma de uma descrição repetida, excessiva e, talvez, desnecessária.

Não é apenas medo da frivolidade diagnosticada da circunstância desse apanágio, que se reitera a cada volta em redundância nos arabescos destas linhas, mas de que o sentimento real – aquele que sinto no corpo e que não posso transpor a vocês senão indiretamente – seja insignificante ou apenas mais uma expressão oca da minha vaidade. Mas eu sinto e não há respostas para tais sentimentos em livros, artigos, filmes, palestras ou missas. Meu sentimento por uma memória – conjunto de imagens visuais e sonoras residualmente inscritas em mim - não se pode justificar nem pelo objeto que referencia, que já não mais existe, nem pela reverência em perspectiva a um mundo porvir, feito quem sabe de luz e som, onde se faça estender essa existência que é aqui, agora, negada, porque minha consciência privada não me permite um tal recurso exegético.

Penso nela todos os dias, todavia, e a comoção recorrente me é um fardo. Como se tivesse entre mãos suas cinzas compactadas no volume de um saco plástico transparente – e isso é o mais próximo da descrição de um cadáver que se lerá aqui. E ainda que pareça possível reconstituir das cinzas, e através do fogo de um momento antes, o corpo sem vida e, antes ainda, a imagem em movimento que me inspira desconsolo... Gostaria de ter agora a imagem do cigarro queimando, lentamente, apenas para poder conservar em mente a medida e a extensão do processo, porque o tempo me escapa e com ele a densidade real dos meus sentimentos, que se dirigem nesse momento apenas a substâncias memoriais e não verdadeiramente as essas cinzas... caso as tivesse em mãos - Eu tampouco fumo.

Posso chorar, e o tenho feito diariamente. Mas estando sozinho, a quem ofereço esse choro? Recrimino-me a cada lágrima, porque não sei, de fato, quão genuíno é o sentimento com qual me ocupo. Costumo duvidar das expressões emotivas rasgadas, ou atribuí-las apenas a um impulso teatral, afinal, somos todos atores diante de um público sempre disposto. Mas me pergunto: por que são tais sentimentos tão urgentes em declararem-se a mim mesmo, em voz alta, ainda quando não há ninguém à volta?

Há resposta alguma nesses apelos? A minha própria morte deveria ser-me indiferente, mas uma sensação distinta me acomete sempre que a projeto nos anos a frente: algo como um deslocamento abdominal sutil, em cuja fisiologia não posso procurar explicação alguma, pois pouco compreendo do que se passa com meu corpo naquele instante: A morte é um colosso, eis aqui uma resposta – A morte é um colosso.

Não me deveria culpar, nem duvidar da comoção o enredo. Estranho mesmo é que haja indiferença diante de morte qualquer que nos tome de assalto, ainda que como um conhecimento furtivo.

A morte é um colosso e nem mesmo todos os panegíricos do mundo e nem longos anos de silêncio deliberado seriam suficientes pra dar conta da sua dimensão colossal. Soa apenas absurdo que todas essas mortes estampadas em reportagens ou nas páginas dos obituários diariamente não nos impossibilite de dar seguimento, simplesmente, às nossas vidas.

Entenda agora a razão dessa missa e desconte dela qualquer excesso que pareça querer contestar destas linhas a mais honesta seriedade. Trata-se de um apelo, um conselho ou tão somente uma sugestão: Não aceite nada que não seja absoluto estarrecimento diante da morte, de quem quer que seja, e mesmo de seu mais odioso inimigo.

A memória te trará sentimentos mais brandos e o tempo a razão dos detalhes que não couberam no momento. Mas a morte permanecerá intocada, inalterável, incorrigível, pois ela é num só instante toda a explicação do nascimento do mundo.