sábado, 31 de janeiro de 2015

A Notícia




Entrei no vagão e sentei-me num banco dianteiro, afastando-me da porta por onde o calor escapava em toda parada pelo trem feita, recolhendo e deixando seus passageiros.
O trem acelerou. S42 Ring Bahn: o “S” faz referência ao título Schnell (rápido) Bahn, que o sistema recebera na época de sua criação, quando, quem sabe, justificava-se.
Hoje, não há nada de particularmente rápido que, ali, faça valer menção tão enfática.
Mas apesar do passado tão presente, é da atualização constante que vive a cidade, fazendo dos prédios antigos e monumentos apenas objetos de decoração. E o trem, esse velho senhor de tez tão antiquada, segue fazendo voltas ao redor dela porque, apesar da ferrugem que eventualmente assalta seus trilhos, além do passado, é também o presente e, ainda hoje, o futuro (se é que ainda há mesmo algum lugar para ir).
O trem parou. Um senhor de barba e cabelos brancos entrou e anunciou com uma voz rouca e cansada em uma língua tão rouca quanto, mas ainda cheia de vitalidade: “Normaleweise würde ich Ihnen die aktuelle Ausgabe der Obdachlosenzeitung Strassenfeger verkaufen. Die aktuelle Ausgabe war so interessant, dass sie seit 4 Tagen ausverkauft ist. Deswegen kann ich heute leider keine Zeitung mehr anbieten. Ich bitte sie um ihre grosszügige Spende, dass ich morgen Zeitungen der neuen Ausgabe kaufen kann.”
Trocando em miúdos, o senhor pedia, por meio de um tal expediente, contribuições para comprar exemplares da nova edição do jornal que, hoje, ele não lhes poderia oferecer porque, “infelizmente”, na razão de ser aquela edição “tão interessante”, já se havia esgotado há 4 dias.
O jornal, que atende pelo título de “jornal dos sem-teto”, faz-se ali não apenas do veículo de informação - nova e supostamente relevante -, como também instrumento de reintegração para alguns desafortunados, através do qual a jornada diária do excluído em angariação de meios materiais para sua sobrevivência perde a indignidade atribuída por aquela mentalidade protestante e se renova em trabalho, orgulho e recurso estratégico.
Mas por razão de evento extraordinário ou talento editorial, fez-se daquela edição tão valiosa que se esgotou. Naquele dado instante, assim, o advento da notícia na forma do produto oferecido entrava em conflito com as reivindicações de um passado moral ainda determinantemente presente, fazendo ecoar - ainda que nas cabeças mais desacreditadas - a ideia de que o trabalho dignifica o homem. Pois se tendo vendido todos os exemplares daquela edição, ainda que se pudessem por isso vangloriar editor e redatores, ficou o pobre homem impedido de exercer a parte que lhe cabia naquela cadeia de ação em justo trabalho.
Pedir, no entanto, não me parece pecado algum e, tampouco, é o trabalho pelo trabalho em si um gesto acima de quaisquer suspeitas. O caso é que não me dei ao trabalho de por nos bolsos a mão, como não o teria feito pela compra da edição que, de todo modo, se esgotara – interessante que fosse a notícia, a teria lido no conforto do meu próprio espaço, através de veículo ainda mais rápido que o trem abaixo de mim.
Mas qualquer que seja a notícia, não é senão a cidade que a torna possível e através de seus meios e no tecido de seus encontros e reencontros, como nos trilhos em círculo daquela linha eu, provavelmente, voltaria a encontrar senhor como aquele, em labuta ou mendicância tão digna quanto a minha avareza ou a generosidade de quem lhe teve algum dinheiro entregado. Porque do passado retive a memória e o futuro só se faz existir em movimento e no espaço.