terça-feira, 24 de junho de 2014

Anamorfose



Havia ela escrito esse texto; um texto tão particular que cada um que lia tinha impressão de tratar-se de história totalmente distinta daquela que lhe havia contado o amigo, tendo lido o texto alguns dias antes. Mas não era no tempo que a diferença se estabelecia e senão no espaço. Duas pessoas que lessem o texto ao mesmo tempo, de pontos diversos no espaço, teriam razão de uma outra novela; ou de um poema; quem sabe, ainda, de uma nota de rodapé; poderia ser que lessem as duas uma mesma coluna jornalística e que, no entanto, cada notícia relatasse o mesmo acontecido numa cidade inteiramente outra. Seria, então, por haverem lido aquelas palavras que chegariam a conclusão de sua própria existência no mundo, uma vez que lendo distintas imagens diante de um mesmo pedaço de papel preso a uma parede, seriam, assim, depoentes da divergência essencial em que se estabelecia aquela experiência. Sentiriam como se estivessem também sendo lidos quando julgassem, por sua posição no espaço, colocarem-se as vistas de um observador atencioso, que enxergava, para cada visada e em cada lugar, uma história particular.

Eu, que olhei pela primeira vez o texto de frente, reparei que ali não constava título e que a pequena história versava sobre o inexistente; sobre os números, as cores, a névoa, o amor, a chuva ou Deus, essas entidades que nos chegam aos olhos e ouvidos, mas de cuja existência é possível duvidar uma vez quando não nos toquem, de fato, a pele. Mas um outro, que houve olhado o texto um pouco mais a direita, jurou-me tratar-se de um manual objetivamente construído em respeito ao funcionamento de certa máquina de utilização bastante prática. A estranheza que me açoitou num primeiro instante, quando tentei recompor uma experiência minha a partir da experiência alheia, foi logo desfeita quando um terceiro nos apresentou a imagem que houve lido diante daquele texto, qual seja a de uma antiga fábula chinesa sobre um homem que tendo sonhado ser uma mariposa, ao despertar, já não podia mais distinguir sonho e vigília, permanecendo assim em dúvida sobre a razão de haver mesmo sido aquilo um sonho ou se, ao contrário, ele era em verdade a própria mariposa que houve um dia sonhando ser homem. Entendi, nesse momento, que a natureza daquele era dinâmica; que a visão parcial não era suficiente para encerrar a imaginação daquele criador num esquema de estrutura imóvel e personagens prováveis; e compreendi que os pés, o tronco, o pescoço e o movimento eram, ali, tão determinantes ao seu leitor quanto os olhos, pois nenhum visível assim se faria sem que antes uma posição se estabelecesse e todo ele variaria conforme a posição mesma também variasse. Soube eu, também, mais tarde, de uma senhora que saíra dali, do ponto em que sua leitura se teve, com a certeza de que acabara de ler uma versão francesa do celebrado Ulisses de James Joyce; de uma criança curiosa que enfrentara naquelas linhas uma pequena narrativa em que se descrevia a trágica morte de seus pais; de dois amigos de infância que, tendo lido o texto ao mesmo tempo, um ao lado do outro, terminaram em uma discussão desmedida sobre a experiência e, depois dali, jamais tornaram a se falar; e, ainda, de um senhor bastante sereno que, ao ser questionado sobre o texto após sua leitura, dissera apenas que se tratava de um texto bonito, deixando aos curiosos como eu a vaga medida do que poderia ou não haver ele lido repousada apenas sobre uma especulação ociosa.


Eu, que por fanatismo retomei a leitura algumas dezenas de vezes depois daquela primeira, nunca mais encontrei as mesmas palavras, as mesmas frases e, às vezes, tampouco a mesma mancha que se marcava sobre o papel conforme a disposição das linhas e margens. Curioso é que todas essas imagens, essas narrativas e metamorfoses estivessem previstas já na cabeça da menina, que utilizara matéria prima tão simples e tão primitiva; onde já não pudesse alcançar com a imaginação, a própria imaginação a faria retroceder e recuperar a visada do ponto onde a luz e o foco ainda existiam. Pois era a menina, senhora daquelas sentenças, cujo nome se declarava, ora no corpo do texto, ora como apêndice num canto do quadro, a única imagem contínua, um traço irrevogável da personalidade que cada uma daquelas histórias compreendia, mesmo quando um outro ali relia também Dom Quixote, Decamerão, Gargantua e Pantagruel, As Mil e uma Noites ou qualquer outra história já registrada nos autos da literatura universal.


Certa feita, encontrei um homem que declarara ali haver lido um lindo e singelo texto sobre a beleza decadente de uma mulher de trinta e poucos anos. Reconheci em seu testemunho uma belíssima história que eu mesmo acompanhara alguns dias antes nos meandros daquelas palavras. Uma coincidência marcante não apenas porque pudéssemos descrever um ao outro a mesma narrativa, sobre uma mesma personagem de nome Carmem, mas porque ambos tocamo-nos profundamente com o texto e pudemos nos identificar com a mesma figura, ali traduzida por uma atriz cuja personalidade parecia marcada pela melancolia e saudosismo de uma juventude cada vez mais distante. E enquanto o homem me descrevia os detalhes da história que tínhamos em comum, eu pude perceber que seus olhos se umedeciam e seu semblante assumia aspectos de um sentimento que eu poderia rever como próprio de Carmem e também meu; certamente, um sentimento que se desprendia como em nota biográfica da vida da menina.


Nesse instante, senti como se eu mesmo desaparecesse na superfície de um corpo maior que nos compreendia, a mim, àquele homem, a Carmem, à menina escritora, enfim, a todo aquele que confirmasse com os olhos o que uma história já antes escrita determinava para os seus corações; como se fosse possível existir sem existir individualmente; como se o mundo que me pertencia e pertencia ao meu olhar fosse o mesmo mundo pertencente a eles e o pertencimento não fosse mais que uma maneira de ser que eu, então, declinava em favor de uma experiência em que éramos um corpo em comum ou o mesmo. Foi a partir dessa experiência singular que retomei a imagem da Gioconda de Leonardo Da Vinci, que dispunha seu olhar direta e igualmente a qualquer um que se apresentasse a sua frente ou mais ao lado ou ao outro. Pensei também nos Embaixadores de Holbein em cuja mancha depositada sobre a tela num canto inferior do quadro se veria uma caveira, mas apenas se o observador se colocasse num ponto preciso em diagonal em relação à superfície do quadro, tendo sempre em mente que a morte, mesmo quando não se lançasse como tema para um observador daquela pintura, lhe estaria sempre à espera. Pensei nas experiências que levaram Heisenberg a concluir que não pode haver certeza sobre a posição de um elétron já que a própria aferição dessa posição implicaria no resultado obtido. Pensei no Aleph descrito por Borges, um ponto pequeníssimo e materialmente localizado no espaço diante do qual seria possível observar todo o universo. Pensei, ainda, no Talmud, esse livro construído ao longo dos séculos pelas interpretações e usos que se vieram fazer sobre a religião e a doutrina judaica, do mesmo modo como pensei na exegese cristã constituída ao longo dos últimos dois milênios e sedimentada por nomes como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, sempre como um reposicionamento no tempo e no espaço, já quando o tempo e o espaço daqueles antigos livros parecessem, na origem, não mais caber. Pensei no discurso de Arafat pronunciado na ONU em 1974, em que a figura de um ramo de oliveira caindo se fazia como metáfora de uma guerra que se seguiria pelos anos seqüentes, não, no entanto, que eu visse ali mágica, advinhação ou vidência alguma, senão enxergando naquela mão o empenho e a decisão de uma personalidade que aderiria aos fatos da história mesmo diante das tempestades e turbulências que se anunciavam. Pensei nas profecias de Nostradamus, no Apocalipse e em todas as imagens possíveis e imagináveis que não se realizaram claramente ou não foram testemunhadas por homens. Pensei, com sorriso empunhado, nos dinossauros: Essas figuras descritas em nossa mitologia científica, mas sobre as quais é ainda possível duvidar das suas cores, suas vozes, dos seus hábitos e, sem dúvida, dos seus pensamentos. Pensei na visão que se tem da Terra desde o espaço e na visão que se pode ter do espaço mesmo de olhos cerrados.


Relembrei, então, a primeira vez em que li aquele texto. A imagem de um texto sem título, assim, fez-me entender que independentemente da forma ou da narrativa que me assaltasse diante daquela leitura imprevista, o título não seria jamais necessário e ainda que houvesse, seria ele apenas uma marca no correr das linhas; um palimpsesto precário. Compreendi também que a chuva ou a névoa, o amor ou a divindade que fosse, não seriam o tema de nenhuma história que não evocasse o absoluto. E subitamente, revendo na memória aquelas quatro linhas, concluí com a estreiteza de quem se posiciona sob um ponto de vista:


- O absoluto é tão pequeno.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Pequenas crônicas sobre grandes cidades: O bosque de Frederico



Ao sair da estação, do confinamento relativo ao espaço aberto, sentindo o calor dispersar-se através da noite, reconhecerá, na placa que anuncia a rua sobre a qual agora caminha, referência ao nome da cidade na qual teve lugar o célebre tratado, que teria como consequência guerra bem mais fria que os corações que agora ali se movem: Warschauer Straße.

Dezenas, talvez centenas impelidos na direção que traça a rua, nos dois sentidos possíveis sobre a ponte e sobre os trilhos a ponte. A procura por resposta alguma nos corpos de desconhecidos fará daquele estranho um inimigo latente em cada olhar a ele dirigido. Estão todos armados, pensará ele; desde a perspectiva que o nomeia, o completo desconhecido será, então, também, persona non grata; aqueles corpos em marcha avançarão sobre qualquer um que venha em sentido oposto; e uma nova guerra se anuncia silenciosamente sob o texto da Cidade.

Mas compreendendo a fisiologia que postula aquela espécie irremediavelmente bélica, da frieza e indiferença dos olhares e afora, será possível reconhecer o calor sanguíneo que circula sob aqueles casacos, pois cada corpo sob a esfera imprecisa que o movimenta é também um universo inteiro. Correrá o risco, no entanto, de perder-se no abismo dos textos possíveis que se projetam atrás daqueles olhos se não se puder comprometer com os seus. Precisará reconhecer-se, assim, na posição que ora ocupa e sob o domínio do tempo que o acolhe se se quiser afirmar ou não se deixar perder simplesmente no movimento ininterrupto que a cidade impõe sobre ele.

Viro à direita e adentro na Revaler Straße e me pergunto se há mudança alguma na direção que traço ou se o caminho dado é mesmo aquele, como uma linha desenhada ao mapa, indicando ao aventureiro o trajeto que deve seguir. Mas meu questionamento é interrompido pela escuridão que paira nos cantos, sob a sombra de corpos menos densos, carregados de intenções suspeitas atrás de olhares que me enfrentam, ininterruptamente, como se esperassem de volta resposta, um aceno, um pedido. Sussurram em uma língua cuja sintaxe é o próprio contexto. Não reconheço as palavras, mas compreendo. Avanço, contudo, e com uma breve pausa na indiferença para dizer-lhes que me são indiferentes: Nein!

À esquerda, depois da Libauer Straße, sigo pela margem direita na Simon-Dach-Straße e um sinal luminoso e quente me oferece abrigo ao olhar através da escuridão: Primitiv. Nomeando não somente o lugar oportuno à saciedade que se pede em vista, mas o estado mesmo em que nascem aqueles desejos. Die Lust hat mich bezwungen, zu fahren in den Wald – são as palavras do poeta; e como a voz dele oculta na noite, outras diversas ecoam ao redor. O sussurro de antes, todavia, tem agora volume exacerbado, como a iluminação nada primitiva do estabelecimento homônimo - Wo durch der Vögel Zungen/ die Ganz Luft esrschallt. Em todo caso, demasiado arbítrio seria designar os desejos de outros passáros, quando mesmo os meus me são ocultos: Ihr strebet nicht nach Schätzen/ durch Abgunst Müh und Neid. - Devo, então, apenas atribuí-los ao cenário, como o autor que oferece ao seu público, não as razões profundas da alma, mas o figurino e o panorama. - Der Wald ist eu´r Ergötzen/ Die Federn euer Kleid.

As vozes que ainda cantam, contudo, tem coloração diversa a cada passo com o qual sigo adentro naquela rua, pois como os topos dos prédios à volta, minha canção segue desígnios distintos dos desígnios do telhado de Simon – e nem mesmo o espanhol de Bolívar soava como o daqueles que o impuseram a língua. Que língua é essa, então, que me inspira devaneios e me apresenta à cidade? Eu me pergunto, pois, qualquer que seja ela, a interrogação é dos tesouros que cumpre ao estranho, mas também ao nativo, guardar. Mas meu embaraço línguistico encontra repouso no nome que se estampa a frente da loja a qual me dirijo: Esperanto. Sigo até o refrigerador, pego a garrafa - cuja mensagem contida é simplesmente o desejo a saciar -, carrego até o caixa que me anuncia o preço: Ein und fünfsig! - Retiro do bolso as moedas e as organizo em tempo de fazer-me compreender pelo outro, que espera de mim tão somente uma operação matemática e, sobretudo, conformidade moral àquela bem estabelecida norma do capital. Tudo tão simples como deve soar uma língua universal. Pago, recolho a garrafa e devolvo uma palavra: “Obrigado!”, sem nem me dar conta de que meu agredecimento protocolar é incompreensível ao homem.

Na saída, há poucos metros dali, uma outra sombra se aproxima, mas desta vez consigo distinguir as palavras em meio ao sussurro: Willst du Weiß? Mas nem por isso o texto é mais claro. Na verdade, o texto é o mesmo: cada interprete encontra, isso sim, no estilo uma forma distinta de apresentá-lo. Mas alguns passos adiante, deixo para trás o perigo. A Simon-Dach-Straße segue - com retidão impecável se se ignora o espaço intersticial deixado pela Koperniku-Straße ao atravessá-la - mas já não é o mesmo obscuro habitat de antes. A selva das vozes noturnas dá, então, novamente lugar ao movimento dos corpos objetivados. E a lição de Copérnico me obriga a rever minhas considerações: Cada corpo revela em seu movimento não somente a fixação relativa de seu eixo, como também as forças que nele exercem os corpos outros ao seu redor; e porque o Sol é o maior dos astros, ao redor dele devem girar esses outros, quase insignificantes, nomeados aqui por “corpos”. Mas deixa-nos sem resposta, entrementes, uma outra pergunta não menos importante: Ao redor de quem gira o Sol? Desconhecida como a língua de um pássaro migrando sem bando é, ainda, essa força a mover tão prontamente o corpo que vos narra o trajeto.

“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” - Mas por que canta? E em que língua? É preciso, antes de tudo, resolver o indeterminado de uma terra que seja mesmo minha.


Vejo-os caindo, o dia todo.

Entrava num supermercado bem próximo a esquina da Birkenstrasse com a Putlizstrasse e vi um homem de aparência árabe (a quem um alemão comum provavelmente chamaria turco) fechando o casaco na saída da loja, preparando-se para enfrentar o vento gelado que o esperava lá fora, de onde eu vinha. Enquanto fechava o casaco, o árabe cantarolava uma música que me soava absolutamente exótica e me alcançava mais ou menos assim: "Odê odê, domin o dans ik, odê..."

Conforme atravessava a porta e passava pelo homem, a música reverberava em minha cabeça e aos poucos ia tomando forma uma canção daquela cultura milenar que ainda assombra nossas cidades...

All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day! Domino dancing
All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day, domino dancing...

O código e a cátedra


Numa academia qualquer na região central de Berlim, preparo-me para realizar um exercício que me exigirá concentração e força. Sorrateiramente, a música que se espalha pelo salão através das caixas de som do lugar penetra meus ouvidos. A princípio, reconheço o som do tipo eletrônico que torna tão célebres as noites dessa cidade. Algumas palavras se repetem como que entrecortadas pelo vazio cinético que faz da poesia declamada uma variação mecânica. Acostumado que estou a política semântica do gênero, deixo correrem as palavras como se o significado lhes fosse indiferente. Mas porque a distância me insufla impulsos nostálgicos, não deixo de reparar que o texto se desenvolve num código familiar:

“Essa boca linda, uma boca linda, essa boca linda, uma boca linda...”

Meu ceticismo, naturalmente, faz me recolher a uma curiosa coincidência fonética em que palavras - assim dispostas em uma língua desconhecida a mim (possivelmente advindas do continente africano, onde a simplicidade silábica outras vezes me fez restar em confusão similar) – assumem o aspecto refletido de minha língua nativa. Mas meu cepticismo é apenas um obstáculo a ser superado quando ponho em razão a alternância entre o pronome demonstrativo e o artigo indefinido, que pede a leitura da sentença como se um verbo de ligação fizesse da primeira expressão um sujeito enquanto a que segue se dispõe como predicado: Apontando para os lábios, possivelmente de seu interlocutor, uma voz feminina faz encômio da inexpressiva tautologia - essa boca linda é uma boca linda.

Mas seguindo conforme um ruído a me desconcentrar da atividade que tenho em espera, e porque, talvez, o filme que se projeta em minha mente a partir daquelas palavras seja demasiado enfadonho, espero com ânsia pelo fim da canção. Ela acaba e, olhando ao meu redor, pareço ser único afetado pelo produto daquele código que espreita inocente no uso grosseiro que dele se faz.

Reconheço-me eu mesmo do outro lado quando ponho em perspectiva o contexto e em relação à memória que tenho do gênero musical em questão em terras latinas, onde o código estrangeiro pede que releguemos a um segundo plano o conteúdo literal.

Não que eu milite contra, como também não a favor, dessa música amiúde mecânica e contemporânea como nenhuma outra. E há, também, quem clame a universalidade do estilo, transpondo barreiras como nunca antes a literatura. Mas é, de algum modo, assustador, reconhecer que a universalidade em referência reside no bruto solo da ineficiência do verbo.