sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Pirâmide de Queóps



O tempo, aqui, conforme compreenderá um pouco mais tarde o leitor, não se deverá precisar e, assim, menos por uma questão do desinteresse ao contexto e às circunstâncias que por medida de um interesse outro e particular, dando nota a uma ideia de tempo que atravessa e ultrapassa o descritivismo seletivo desse mero autor – ferramenta muita vez eficaz, mas não mais que isso.

No meio da rua que segue paralelamente à Quinta da Boa Vista e em direção a ampla zona norte do Rio de Janeiro, um corpo se projeta arqueado, com o rosto colado lateralmente ao chão, cintura empinada acima e os joelhos um tanto dobrados próximos ao tórax, tal qual dispusesse-se como arquitetura alguma, em cujo planejamento se atestaria apenas, no entanto, a circunstância, armada em ossos e carne e roupas. Os carros, das velocidades reduzidas em razão do inesperado obstáculo, contornam o cadáver, a partir do qual segue-se, desde a cabeça, uma corrente de sangue atenta à geologia particular do asfalto, e fazendo-se dividir em seguimentos e afluentes diversos, como um grande rio margeando uma grande cidade.

Na calçada ao lado esquerdo, alguns metros a frente, seguindo a disposição de um narrador que se move em seu carro em fluxo coerente com a velocidade e o sentido em que se orienta o organismo urbano compreendido por esses veículos em uso, um aglomerado, de dez a doze pessoas, destaca-se pela gesticulação exagerada e enfática e pelo tom exaltado em que se estabelece a intervenção sonora de dois ou três destes, de modo a atravessar a intimidade daquela reunião e alcançar o espaço privativo dos motoristas dos veículos em trânsito.

A reunião, em todo caso, pede orientar-se pela figura que enreda o momento, largada ao asfalto, mercê da severidade de um juízo que qualquer motorista, ali, desavisado que seja, será capaz de impor a uma dúvida qualquer que se lance: está morta.

Os trajes desbotados acusam uma posição social definida, como também o local em que se revela. O cabelo comprido e o corpo exageradamente feminino contrastam com a virilidade sutil e incalculada que escapa do rosto, como se a natureza fosse um aspecto a sublimar. Mas, sobretudo, qualquer questionamento de gênero se fará irrelevante ao testemunho de um que atravesse o instante e não guarde da cena mais que a monumentalidade e o vigor estrutural daquela peça sobre a qual se pede apenas o desvio e a indiferença medida que se deve entregar a coluna aquela em honra ao herói de outros tempos.

Não há tempo, ali, que se deva, então, medir. Nem mesmo o atraso do passante, dono da cronologia ordinária que seus compromissos evocam, será medida alguma para desnaturar a imponência do corpo que fala, com a voz de um tempo sem tempo, de uma história sem história, de uma civilização sem origem. Não é a morte que emerge como tema, mas a imortalidade que se vela e desvela-se no corpo já morto. O corpo, matéria densa e opaca que interrompe o trajeto dos olhos no campo visível – esse espaço sem margem, só espaço -, presentifica a eternidade porque sem ele, eternidade seria a pura ausência. É a contradição sobre a qual se assentam muitas das nossas religiões: a eternidade é uma ideia que tem apenas lugar no instante, porque sua pronúncia tem começo e fim.

Não deve ser coincidência, assim, essa disposição triangular do edifício tombado, erguendo-se ao alto ao mesmo tempo em que afirma no plano e ao horizonte suas bases. Pois enquanto a alma se eleva, a gravidade se impõe.

A cidade é esse terreno em que os corpos são monumentos uns para os outros, ao mesmo tempo eternos e repentinos; e enquanto os corpos se evitam ou se esbarram, os pensamentos desenham outras formas e sugerem outros caminhos: há muito mais matemática na narrativa acidentada do instante e circunstância do que sugerem os utilitários imperativos de nossa existência.