terça-feira, 14 de outubro de 2014

O homem e o lago




O jovem, procurando por razões e histórias que pudessem preencher o vazio que sentia dentro de si, foi ter com o ancião da vila, esperando que este lhe pudesse dar alguma resposta.

O velho, então, contou-lhe uma história antiga, registrada nos autos do grande livro de histórias de sua comunidade, sobre um homem que se sentara à beira do lago com sua vara de pescar e colocara-se a pesca. E como depois de algumas horas nenhum peixe houvesse beliscado a isca e o porque a paciência não era uma das virtudes daquele pescador, resolveu o homem prender a vara à margem e aproximar seu rosto da superfície do lado, tentando enxergar o movimento dos peixes abaixo dela. Só conseguiu ver ali, no entanto, a imensidão deserta do fundo do lago. Aproximou-se, assim, mais um pouco e depois mais um pouco ainda, até que uma brisa inesperada o fez perder o equilibrio e o derrubou nas águas da lagoa.

Ao tentar nadar de volta à margem, descobriu que estava preso ao anzol na ponta da linha de sua vara. Tentou em vão tirar aquele gancho que o perfurava num ponto cego exatamente bem ao centro de suas costas e inacessível às suas mãos.

O homem nadou por três dias e três noites inteiras com o anzol preso a si e como não houvesse ninguém por perto para puxar a linha e trazê-lo de volta à margem, desfaleceu e afundou lentamente, indo seu corpo habitar, a partir dali, o fundo daquele lago.

Explicou, depois, ao jovem a moral da história: “O homem que produz a arma é também aquele que produz a guerra; e este que produz a guerra é também o autor da glória dos vitoriosos e, ainda, da miséria da qual padecem os derrotados.”

O jovem ficou intrigado com a história e durante três dias e três noites pensou naquelas palavras procurando um sentido que o satisfizesse. Recorreu, então, ao grande livro, esperando encontrar outros detalhes e, talvez, algum significado outro que pudesse completar as lacunas deixadas pela história contada pelo mestre. Surpreso, descobriu que a história não constava no livro.

Retornou, então, a casa do ancião para perguntá-lo a respeito do porquê daquela ausência, mas ao chegar lá, encontrou-o desacordado e com a boca suja diante de uma carta e um vidro de tinta vazio. Viu com terror no pacífico daquela semblante que o senhor jamais acordaria das profundezas de seu sono e constatou, ainda mais uma vez, ao ler a carta - escrita com a mesma tinta outrora conservada no vidro agora vazio - que dizia: “O homem que não produz suas próprias histórias é como o lago vazio diante dele e não importa o quanto aproxime seu rosto da superfície do lago, o único movimento que verá, será o seu próprio ao aproximar-se.”

Quando recuou o rosto da carta, percebeu que havia apenas um corpo naquele recinto e esse era o seu próprio, já ausente de toda e qualquer curiosidade e com a boca irremediavelmente suja de tinta.

sábado, 11 de outubro de 2014

Pietra e a representação da vontade

Caminhavam de mãos dadas mãe e filha pelo jardim, quando a menina perguntou: "Mãe, a lagarta gosta de queimar a gente?"

- Não filha, ela queima pra se defender - respondeu a mãe e ficou a criança em silêncio por alguns segundos, mas não porque estivesse satisfeita com a resposta que recebera, pelo contrário. Para ela seria impossível compreender a razão da incompatibilidade entre a defesa da qual era praticante a lagarta e um gosto possível pelo qual se tivesse, então, motivado.

- Ela não gosta, então? - perguntou esperando a confirmação da resposta que a mãe deixou para ela subentendida. A mãe, então, percebeu o problema que tinha em mãos: não tinha a filha suficiente intimidade com o tema para supor da primeira resposta uma separação evidente entre vontade e necessidade. Convenientemente, havia a menina lhe entregue a chance de ali concluir, fazendo-a aceitar que entre a ação e a vontade da lagarta não existia mais que uma relação de mera circunstância e, então, reduzindo a curiosidade da criança a autoridade de seu julgamento pela negação resoluta. Mas o instinto pedagógico materno  lhe sugeriu que seguisse adiante com o questionamento da menina.

- Não é que ela não goste, filha. Mas goste ou não, a lagarta queima porque precisa. Não é pra ela possível não fazê-lo.

Estava exposto o expediente: Havia a lagarta sido reduzida à condição de criatura acrásica e, sem poder para determinar a si mesma, não poderia ser tomada por um capricho de gosto, ou qualquer coisa parecida com isso, por conta da reação da qual era a fonte.

Mas para menina, a relação entre a vontade e a ação era inalienável, mecânica ou quase isso, não sendo possível à criança conceber qualquer representação do inseto que não fosse individualizada; talvez, um espelho da sua própria existência como sujeito. Pois, se o prazer e a vontade não a impeliam aos termos da sua defesa, deveria haver ali vontade ou prazer outros, quem sabe opostos até as consequências que se tinham em vista:  "Ela tenta não queimar a gente, mas não consegue parar, né? É tão rápido que quando ela vai ver, já queimou sem querer... - fazia, assim, a menina o retrato de uma lagarta desgovernada, inconsequente e vítima da sua determinação biológica, como a mãe a havia ensinado, mas não sem o drama de uma criatura que sente, que julga e que sofre; contornava ao redor da lagarta uma psicologia tão delicadamente humanizada, que seria possível imputar sobre ela um juízo moral qualquer. Mas para a menina era preciso, acima de tudo, defendê-la até às últimas consequências do estigma e do vilanismo que atribuímos aos nossos algozes assim como se fazia nos desenhos que sua imaginação frequentava. - Ela não faz por mal, né mãe? - completou com  ponderação amável até, como se justificasse a si mesma a impossibilidade de fazer carinho no inseto, como provavelmente alguma vez pretendeu um segundo antes que algum adulto a tivesse aconselhado a não fazer.

A mulher, em cujos conhecimentos se alimentava uma visão mais sóbria e relativa, tratou de explicar a filha que não seria razoável projetar-se no pequeno ser vivo. Que há dois universos distintos para as motivações humanas e as motivações das lagartas. Destituindo, novamente, a lagarta da humanidade que a filha insistia em retomar: "Não filha, ela não faz por mal porque ela nem sabe o que é mal. Ninguém ensinou pra ela o que é certo ou errado e mesmo se se tentasse ensinar, é muito pouco provável que ela conseguisse aprender."

Mas a criança, reproduzindo a partir de seu próprio entendimento o descaso da mãe para com o intelecto do bicho, perguntou uma última vez: ˜Você diz isso porque já tentou ensinar alguma lagarta e ela não aprendeu, né mãe? - seria preciso agora explicar porque a mesma suposição que a mãe fazia da ignorância da lagarta em respeito a noções tão humanas como bem e mal, não se aplicaria a mãe sobre os desígnios profundos do inseto, já que, certamente, grande conhecedora essa não era da psiquê da lagarta.

Mas a filosofia é uma disciplina que requer do seu interlocutor a maturidade de uma vida de experiências e conhecimento profundo da fisiologia do mundo, onde lagartas são lagartas e homens são homens; e ninguém pode culpar aquela mãe de não ter dado o melhor de si.

Criança não entende nada mesmo...

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

À Força




Há quem consiga amar co`a alma
quando o corpo, dono dos gestos amáveis,
imerso em dura e estafante labuta, vacila?


Há quem a arte redima dos golpes
a seco nas feridas e calos, que o faça
querer mesmo o palco ao invés da cama?


Há, enfim, quem acredite na palavra
- rebenta palavra - essa que salva e guia
do escuro onde o cego vigia, à iluminação?


cansaço: eis a fé que me aliena
de resto, nem a rima vale...
mas a alma, essa sim é tão menor.

O disco de ouro.


Escrevi a você uma carta que está agora enterrada em mim ou foi lançada nesse interior espaço sem fim. Se você é, por força da transferência da qual foi vítima, testemunha onisciente do universo neste instante, por favor, leia-a com atenção; atenção que não pude eu dar àquelas palavras, porque elas aqui não existam ou porque soem nesse mundo demasiadamente vagas ou sem sentido; pelo excesso de dúvidas ou pela falta de explicações, pouco importa; meu desejo de lhe entregar essas notas é ainda maior que o desejo de entender o que sinto.

Com amor,

domingo, 20 de julho de 2014

Da ontologia urbana

O observador caminha sobre paralelepípedos e cimento rachado; cacos de vidro e bitucas de cigarro; à volta com edifícios e janelas e portões e postes e luzes e muros escritos e calados e cartazes e outdoors e pontos de ônibus e árvores e carros e bicicletas e pessoas e cachorros, mas, principalmente, pessoas; comida e garrafas vazias e cheias e cigarros e fumaça e cheiros diversos e gestos e risadas e agressividade e indiferença e ostentação e miséria; quase não há flores exceto pelas que estampam os vestidos das moças; no entanto, florescem ali tantas coisas - belas e terríveis, vermelhas, cinzas, perigosas e inofensivas, naturais, não-naturais, razoáveis e incompreensíveis - que, ainda quando não encantem aos olhos, há que se dirigir a elas com atenção e dando-lhes nomes.

A cidade é um jardim de coisas.    

sábado, 5 de julho de 2014

Frederic's Grove



Upon leaving the station, from the relative confinament into the open space, feeling the heat to dispel through the night, one will reconigze in the sign shouting the name of the street on wich now walks, reference to the name of the city in wich took place the famous treaty, that would result in war wey more cold than the hearts now moving around : Warschauer Straße.

Dozens, maybe hundreds impeled in the direction the street traces, in both possible ways over the bridge and over the rails the bridge. The search for any answers in the bodies of unknowns will make of this stranger a potencial enemy in face of every look to him directed. "They are all up in arms" - he'll think; and since his own perspective, the complete unknown will be, then, also persona non grata; those bodies on march will move forward over anyone who comes in the opposite way; and a new war silently announces itself under the text of the city.

But as one can understand the fisiology of that species hopelessly warlike, fraught with coldness and indifference from the eyes and outwards, will be possible to recognize the bloody heat circulating under those jackets, whereas each body - below the inaccurate sphere wich moves it - is also a whole universe. He'll run the risk, however, of loosing himself in the abism of possible texts projecting themselves behind those eyes if he could not commit himself with his own narrative. He must reconigze himself, thereby, in the position he now occupies and under the domain of the time wich embraces him, if he wants express and do not let himself loose simply in the uninterrupt movement that the city imposes on him.

I turn to the right and go on in the Revaler Straße, asking myself whether there is any change in the direction I trace or this is actually the given way, as a drawn line on the map, indicating the adventurer, the route he shall follow. But my questioning is interrupted by the darkness hovering around the corners, under less dense bodies' shadows, loaded with suspicious intentions behind looks facing me on and on, as if they were waiting for answers, for a wave or an order. They whisper in a language whose sintax is the context itself. I can´t reconigze the words, but I comprehend. I go on, yet, and with a brief pause in the indifference to say them they´re to me indifferent: Nein!


On the left, after the Libauer Straße, I move on by the right wayside in the Simon-Dach-Straße and a luminous and hot sign offers me shelter to the view across the darkness: "Primitv". Naming not only the proper place to the satiety it is required in order, but the very state in wich those desires are born. Die Lust hat mich bezwungen, zu fahren in den Wald – these are the poet´s words; and as his voice, hidden in the night, several others echo around. The whispers of before, however, have now exacerbated volume, as the nothing like primitive lighting of its homonym place - Wo durch der Vögel Zungen/ die Ganz Luft esrschallt. - In any case, an excessive arbitrariness would be to designate the desires of other birds, when even my own desires are obscure to me: Ihr strebet nicht nach Schätzen/ durch Abgunst Müh und Neid. - I shall, therefore, attribute them to the scenario, as the author who offers to his public, not the deep reasons of soul, but the wardrobe and the panorama. - Der Wald ist eu´r Ergötzen/ Die Federn euer Kleid.

The voices still sing, nevertheless, but now with different colors and changing after each step with wich I keep going on deep in that street, once my song has distinct assignments - as the top of the bildings around – than the assignments of the roof of Simon – and not even the spanish of Bolívar sounded exactly like the spanish of those who had imposed on him the language. What language is this, then, that inspires me daydreams and introduces me the city? I ask myself, cause, whatever the question is, the questioning is one of the treasures of the language that suits the stranger, but also the native one, to keep. But my linguistic embarrasment finds relief in the name printed in front of the store to wich a direct myself: Esperanto. I go to the cooler, pick up the bottle – whose message contained is merely the desire to sate -, I carry it until the cashier who announces me the price: Ein und fünfsig! - I take coins out of the pocket and I organize them in order to make me intelligible to the other, who expects from me just a simple mathematic operation and, above all, moral conformity to that well-established rule of the Capital. Everything so simple as should be the sound of a universal language. I pay, take the bottle and give him back one word: “Obrigado!”, without realize that my protocol thank is incomprehensible to the man.

At the exit, a few meters from there, another shadow approaches me, but this time I can distinguise the words amid the whisper: Willst du Weiß? But the text is, not even for that, clearer. As a matter of fact, the text is the same: each interpreter finds, this is it, in the style a distinct way to present it. But some steps forward and the threat is gone. The Simon-Dach-Straße goes on – with faultless rectitude if one ignores the interstitial space that Koperniku-Straße leaves on it while crossing this street – but it is no longer the same obscure habitat. The forest of nocturne voices gives way once again to the movement of the objectfied bodies. And the Copernicus' lesson compels me to revise my thoughts: Each body reveals on its movement not only the relative setting of its axis, as well as the other bodies' forces over it exerted; and because the Sun is the biggest luminary, should revolve around it these others, almost insignificant, named here merely after “bodies”. But there´s no answer, still, to another crucial question hoving over my conciousness: Around who revolves the Sun? Unknown, as a language of a bird migrating without flock, it is this force moving so promptly the body wich narrates to you the pathway.

“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” - But why sings he? And in what language? It is necessary, first of all, to solve the undetermined of a “Land of mine”.


terça-feira, 24 de junho de 2014

Anamorfose



Havia ela escrito esse texto; um texto tão particular que cada um que lia tinha impressão de tratar-se de história totalmente distinta daquela que lhe havia contado o amigo, tendo lido o texto alguns dias antes. Mas não era no tempo que a diferença se estabelecia e senão no espaço. Duas pessoas que lessem o texto ao mesmo tempo, de pontos diversos no espaço, teriam razão de uma outra novela; ou de um poema; quem sabe, ainda, de uma nota de rodapé; poderia ser que lessem as duas uma mesma coluna jornalística e que, no entanto, cada notícia relatasse o mesmo acontecido numa cidade inteiramente outra. Seria, então, por haverem lido aquelas palavras que chegariam a conclusão de sua própria existência no mundo, uma vez que lendo distintas imagens diante de um mesmo pedaço de papel preso a uma parede, seriam, assim, depoentes da divergência essencial em que se estabelecia aquela experiência. Sentiriam como se estivessem também sendo lidos quando julgassem, por sua posição no espaço, colocarem-se as vistas de um observador atencioso, que enxergava, para cada visada e em cada lugar, uma história particular.

Eu, que olhei pela primeira vez o texto de frente, reparei que ali não constava título e que a pequena história versava sobre o inexistente; sobre os números, as cores, a névoa, o amor, a chuva ou Deus, essas entidades que nos chegam aos olhos e ouvidos, mas de cuja existência é possível duvidar uma vez quando não nos toquem, de fato, a pele. Mas um outro, que houve olhado o texto um pouco mais a direita, jurou-me tratar-se de um manual objetivamente construído em respeito ao funcionamento de certa máquina de utilização bastante prática. A estranheza que me açoitou num primeiro instante, quando tentei recompor uma experiência minha a partir da experiência alheia, foi logo desfeita quando um terceiro nos apresentou a imagem que houve lido diante daquele texto, qual seja a de uma antiga fábula chinesa sobre um homem que tendo sonhado ser uma mariposa, ao despertar, já não podia mais distinguir sonho e vigília, permanecendo assim em dúvida sobre a razão de haver mesmo sido aquilo um sonho ou se, ao contrário, ele era em verdade a própria mariposa que houve um dia sonhando ser homem. Entendi, nesse momento, que a natureza daquele era dinâmica; que a visão parcial não era suficiente para encerrar a imaginação daquele criador num esquema de estrutura imóvel e personagens prováveis; e compreendi que os pés, o tronco, o pescoço e o movimento eram, ali, tão determinantes ao seu leitor quanto os olhos, pois nenhum visível assim se faria sem que antes uma posição se estabelecesse e todo ele variaria conforme a posição mesma também variasse. Soube eu, também, mais tarde, de uma senhora que saíra dali, do ponto em que sua leitura se teve, com a certeza de que acabara de ler uma versão francesa do celebrado Ulisses de James Joyce; de uma criança curiosa que enfrentara naquelas linhas uma pequena narrativa em que se descrevia a trágica morte de seus pais; de dois amigos de infância que, tendo lido o texto ao mesmo tempo, um ao lado do outro, terminaram em uma discussão desmedida sobre a experiência e, depois dali, jamais tornaram a se falar; e, ainda, de um senhor bastante sereno que, ao ser questionado sobre o texto após sua leitura, dissera apenas que se tratava de um texto bonito, deixando aos curiosos como eu a vaga medida do que poderia ou não haver ele lido repousada apenas sobre uma especulação ociosa.


Eu, que por fanatismo retomei a leitura algumas dezenas de vezes depois daquela primeira, nunca mais encontrei as mesmas palavras, as mesmas frases e, às vezes, tampouco a mesma mancha que se marcava sobre o papel conforme a disposição das linhas e margens. Curioso é que todas essas imagens, essas narrativas e metamorfoses estivessem previstas já na cabeça da menina, que utilizara matéria prima tão simples e tão primitiva; onde já não pudesse alcançar com a imaginação, a própria imaginação a faria retroceder e recuperar a visada do ponto onde a luz e o foco ainda existiam. Pois era a menina, senhora daquelas sentenças, cujo nome se declarava, ora no corpo do texto, ora como apêndice num canto do quadro, a única imagem contínua, um traço irrevogável da personalidade que cada uma daquelas histórias compreendia, mesmo quando um outro ali relia também Dom Quixote, Decamerão, Gargantua e Pantagruel, As Mil e uma Noites ou qualquer outra história já registrada nos autos da literatura universal.


Certa feita, encontrei um homem que declarara ali haver lido um lindo e singelo texto sobre a beleza decadente de uma mulher de trinta e poucos anos. Reconheci em seu testemunho uma belíssima história que eu mesmo acompanhara alguns dias antes nos meandros daquelas palavras. Uma coincidência marcante não apenas porque pudéssemos descrever um ao outro a mesma narrativa, sobre uma mesma personagem de nome Carmem, mas porque ambos tocamo-nos profundamente com o texto e pudemos nos identificar com a mesma figura, ali traduzida por uma atriz cuja personalidade parecia marcada pela melancolia e saudosismo de uma juventude cada vez mais distante. E enquanto o homem me descrevia os detalhes da história que tínhamos em comum, eu pude perceber que seus olhos se umedeciam e seu semblante assumia aspectos de um sentimento que eu poderia rever como próprio de Carmem e também meu; certamente, um sentimento que se desprendia como em nota biográfica da vida da menina.


Nesse instante, senti como se eu mesmo desaparecesse na superfície de um corpo maior que nos compreendia, a mim, àquele homem, a Carmem, à menina escritora, enfim, a todo aquele que confirmasse com os olhos o que uma história já antes escrita determinava para os seus corações; como se fosse possível existir sem existir individualmente; como se o mundo que me pertencia e pertencia ao meu olhar fosse o mesmo mundo pertencente a eles e o pertencimento não fosse mais que uma maneira de ser que eu, então, declinava em favor de uma experiência em que éramos um corpo em comum ou o mesmo. Foi a partir dessa experiência singular que retomei a imagem da Gioconda de Leonardo Da Vinci, que dispunha seu olhar direta e igualmente a qualquer um que se apresentasse a sua frente ou mais ao lado ou ao outro. Pensei também nos Embaixadores de Holbein em cuja mancha depositada sobre a tela num canto inferior do quadro se veria uma caveira, mas apenas se o observador se colocasse num ponto preciso em diagonal em relação à superfície do quadro, tendo sempre em mente que a morte, mesmo quando não se lançasse como tema para um observador daquela pintura, lhe estaria sempre à espera. Pensei nas experiências que levaram Heisenberg a concluir que não pode haver certeza sobre a posição de um elétron já que a própria aferição dessa posição implicaria no resultado obtido. Pensei no Aleph descrito por Borges, um ponto pequeníssimo e materialmente localizado no espaço diante do qual seria possível observar todo o universo. Pensei, ainda, no Talmud, esse livro construído ao longo dos séculos pelas interpretações e usos que se vieram fazer sobre a religião e a doutrina judaica, do mesmo modo como pensei na exegese cristã constituída ao longo dos últimos dois milênios e sedimentada por nomes como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, sempre como um reposicionamento no tempo e no espaço, já quando o tempo e o espaço daqueles antigos livros parecessem, na origem, não mais caber. Pensei no discurso de Arafat pronunciado na ONU em 1974, em que a figura de um ramo de oliveira caindo se fazia como metáfora de uma guerra que se seguiria pelos anos seqüentes, não, no entanto, que eu visse ali mágica, advinhação ou vidência alguma, senão enxergando naquela mão o empenho e a decisão de uma personalidade que aderiria aos fatos da história mesmo diante das tempestades e turbulências que se anunciavam. Pensei nas profecias de Nostradamus, no Apocalipse e em todas as imagens possíveis e imagináveis que não se realizaram claramente ou não foram testemunhadas por homens. Pensei, com sorriso empunhado, nos dinossauros: Essas figuras descritas em nossa mitologia científica, mas sobre as quais é ainda possível duvidar das suas cores, suas vozes, dos seus hábitos e, sem dúvida, dos seus pensamentos. Pensei na visão que se tem da Terra desde o espaço e na visão que se pode ter do espaço mesmo de olhos cerrados.


Relembrei, então, a primeira vez em que li aquele texto. A imagem de um texto sem título, assim, fez-me entender que independentemente da forma ou da narrativa que me assaltasse diante daquela leitura imprevista, o título não seria jamais necessário e ainda que houvesse, seria ele apenas uma marca no correr das linhas; um palimpsesto precário. Compreendi também que a chuva ou a névoa, o amor ou a divindade que fosse, não seriam o tema de nenhuma história que não evocasse o absoluto. E subitamente, revendo na memória aquelas quatro linhas, concluí com a estreiteza de quem se posiciona sob um ponto de vista:


- O absoluto é tão pequeno.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Pequenas crônicas sobre grandes cidades: O bosque de Frederico



Ao sair da estação, do confinamento relativo ao espaço aberto, sentindo o calor dispersar-se através da noite, reconhecerá, na placa que anuncia a rua sobre a qual agora caminha, referência ao nome da cidade na qual teve lugar o célebre tratado, que teria como consequência guerra bem mais fria que os corações que agora ali se movem: Warschauer Straße.

Dezenas, talvez centenas impelidos na direção que traça a rua, nos dois sentidos possíveis sobre a ponte e sobre os trilhos a ponte. A procura por resposta alguma nos corpos de desconhecidos fará daquele estranho um inimigo latente em cada olhar a ele dirigido. Estão todos armados, pensará ele; desde a perspectiva que o nomeia, o completo desconhecido será, então, também, persona non grata; aqueles corpos em marcha avançarão sobre qualquer um que venha em sentido oposto; e uma nova guerra se anuncia silenciosamente sob o texto da Cidade.

Mas compreendendo a fisiologia que postula aquela espécie irremediavelmente bélica, da frieza e indiferença dos olhares e afora, será possível reconhecer o calor sanguíneo que circula sob aqueles casacos, pois cada corpo sob a esfera imprecisa que o movimenta é também um universo inteiro. Correrá o risco, no entanto, de perder-se no abismo dos textos possíveis que se projetam atrás daqueles olhos se não se puder comprometer com os seus. Precisará reconhecer-se, assim, na posição que ora ocupa e sob o domínio do tempo que o acolhe se se quiser afirmar ou não se deixar perder simplesmente no movimento ininterrupto que a cidade impõe sobre ele.

Viro à direita e adentro na Revaler Straße e me pergunto se há mudança alguma na direção que traço ou se o caminho dado é mesmo aquele, como uma linha desenhada ao mapa, indicando ao aventureiro o trajeto que deve seguir. Mas meu questionamento é interrompido pela escuridão que paira nos cantos, sob a sombra de corpos menos densos, carregados de intenções suspeitas atrás de olhares que me enfrentam, ininterruptamente, como se esperassem de volta resposta, um aceno, um pedido. Sussurram em uma língua cuja sintaxe é o próprio contexto. Não reconheço as palavras, mas compreendo. Avanço, contudo, e com uma breve pausa na indiferença para dizer-lhes que me são indiferentes: Nein!

À esquerda, depois da Libauer Straße, sigo pela margem direita na Simon-Dach-Straße e um sinal luminoso e quente me oferece abrigo ao olhar através da escuridão: Primitiv. Nomeando não somente o lugar oportuno à saciedade que se pede em vista, mas o estado mesmo em que nascem aqueles desejos. Die Lust hat mich bezwungen, zu fahren in den Wald – são as palavras do poeta; e como a voz dele oculta na noite, outras diversas ecoam ao redor. O sussurro de antes, todavia, tem agora volume exacerbado, como a iluminação nada primitiva do estabelecimento homônimo - Wo durch der Vögel Zungen/ die Ganz Luft esrschallt. Em todo caso, demasiado arbítrio seria designar os desejos de outros passáros, quando mesmo os meus me são ocultos: Ihr strebet nicht nach Schätzen/ durch Abgunst Müh und Neid. - Devo, então, apenas atribuí-los ao cenário, como o autor que oferece ao seu público, não as razões profundas da alma, mas o figurino e o panorama. - Der Wald ist eu´r Ergötzen/ Die Federn euer Kleid.

As vozes que ainda cantam, contudo, tem coloração diversa a cada passo com o qual sigo adentro naquela rua, pois como os topos dos prédios à volta, minha canção segue desígnios distintos dos desígnios do telhado de Simon – e nem mesmo o espanhol de Bolívar soava como o daqueles que o impuseram a língua. Que língua é essa, então, que me inspira devaneios e me apresenta à cidade? Eu me pergunto, pois, qualquer que seja ela, a interrogação é dos tesouros que cumpre ao estranho, mas também ao nativo, guardar. Mas meu embaraço línguistico encontra repouso no nome que se estampa a frente da loja a qual me dirijo: Esperanto. Sigo até o refrigerador, pego a garrafa - cuja mensagem contida é simplesmente o desejo a saciar -, carrego até o caixa que me anuncia o preço: Ein und fünfsig! - Retiro do bolso as moedas e as organizo em tempo de fazer-me compreender pelo outro, que espera de mim tão somente uma operação matemática e, sobretudo, conformidade moral àquela bem estabelecida norma do capital. Tudo tão simples como deve soar uma língua universal. Pago, recolho a garrafa e devolvo uma palavra: “Obrigado!”, sem nem me dar conta de que meu agredecimento protocolar é incompreensível ao homem.

Na saída, há poucos metros dali, uma outra sombra se aproxima, mas desta vez consigo distinguir as palavras em meio ao sussurro: Willst du Weiß? Mas nem por isso o texto é mais claro. Na verdade, o texto é o mesmo: cada interprete encontra, isso sim, no estilo uma forma distinta de apresentá-lo. Mas alguns passos adiante, deixo para trás o perigo. A Simon-Dach-Straße segue - com retidão impecável se se ignora o espaço intersticial deixado pela Koperniku-Straße ao atravessá-la - mas já não é o mesmo obscuro habitat de antes. A selva das vozes noturnas dá, então, novamente lugar ao movimento dos corpos objetivados. E a lição de Copérnico me obriga a rever minhas considerações: Cada corpo revela em seu movimento não somente a fixação relativa de seu eixo, como também as forças que nele exercem os corpos outros ao seu redor; e porque o Sol é o maior dos astros, ao redor dele devem girar esses outros, quase insignificantes, nomeados aqui por “corpos”. Mas deixa-nos sem resposta, entrementes, uma outra pergunta não menos importante: Ao redor de quem gira o Sol? Desconhecida como a língua de um pássaro migrando sem bando é, ainda, essa força a mover tão prontamente o corpo que vos narra o trajeto.

“Minha terra tem palmeiras onde canta o sabiá” - Mas por que canta? E em que língua? É preciso, antes de tudo, resolver o indeterminado de uma terra que seja mesmo minha.


Vejo-os caindo, o dia todo.

Entrava num supermercado bem próximo a esquina da Birkenstrasse com a Putlizstrasse e vi um homem de aparência árabe (a quem um alemão comum provavelmente chamaria turco) fechando o casaco na saída da loja, preparando-se para enfrentar o vento gelado que o esperava lá fora, de onde eu vinha. Enquanto fechava o casaco, o árabe cantarolava uma música que me soava absolutamente exótica e me alcançava mais ou menos assim: "Odê odê, domin o dans ik, odê..."

Conforme atravessava a porta e passava pelo homem, a música reverberava em minha cabeça e aos poucos ia tomando forma uma canção daquela cultura milenar que ainda assombra nossas cidades...

All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day! Domino dancing
All day, all day! Watch them all fall down
All day, all day, domino dancing...

O código e a cátedra


Numa academia qualquer na região central de Berlim, preparo-me para realizar um exercício que me exigirá concentração e força. Sorrateiramente, a música que se espalha pelo salão através das caixas de som do lugar penetra meus ouvidos. A princípio, reconheço o som do tipo eletrônico que torna tão célebres as noites dessa cidade. Algumas palavras se repetem como que entrecortadas pelo vazio cinético que faz da poesia declamada uma variação mecânica. Acostumado que estou a política semântica do gênero, deixo correrem as palavras como se o significado lhes fosse indiferente. Mas porque a distância me insufla impulsos nostálgicos, não deixo de reparar que o texto se desenvolve num código familiar:

“Essa boca linda, uma boca linda, essa boca linda, uma boca linda...”

Meu ceticismo, naturalmente, faz me recolher a uma curiosa coincidência fonética em que palavras - assim dispostas em uma língua desconhecida a mim (possivelmente advindas do continente africano, onde a simplicidade silábica outras vezes me fez restar em confusão similar) – assumem o aspecto refletido de minha língua nativa. Mas meu cepticismo é apenas um obstáculo a ser superado quando ponho em razão a alternância entre o pronome demonstrativo e o artigo indefinido, que pede a leitura da sentença como se um verbo de ligação fizesse da primeira expressão um sujeito enquanto a que segue se dispõe como predicado: Apontando para os lábios, possivelmente de seu interlocutor, uma voz feminina faz encômio da inexpressiva tautologia - essa boca linda é uma boca linda.

Mas seguindo conforme um ruído a me desconcentrar da atividade que tenho em espera, e porque, talvez, o filme que se projeta em minha mente a partir daquelas palavras seja demasiado enfadonho, espero com ânsia pelo fim da canção. Ela acaba e, olhando ao meu redor, pareço ser único afetado pelo produto daquele código que espreita inocente no uso grosseiro que dele se faz.

Reconheço-me eu mesmo do outro lado quando ponho em perspectiva o contexto e em relação à memória que tenho do gênero musical em questão em terras latinas, onde o código estrangeiro pede que releguemos a um segundo plano o conteúdo literal.

Não que eu milite contra, como também não a favor, dessa música amiúde mecânica e contemporânea como nenhuma outra. E há, também, quem clame a universalidade do estilo, transpondo barreiras como nunca antes a literatura. Mas é, de algum modo, assustador, reconhecer que a universalidade em referência reside no bruto solo da ineficiência do verbo.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Pirâmide de Queóps



O tempo, aqui, conforme compreenderá um pouco mais tarde o leitor, não se deverá precisar e, assim, menos por uma questão do desinteresse ao contexto e às circunstâncias que por medida de um interesse outro e particular, dando nota a uma ideia de tempo que atravessa e ultrapassa o descritivismo seletivo desse mero autor – ferramenta muita vez eficaz, mas não mais que isso.

No meio da rua que segue paralelamente à Quinta da Boa Vista e em direção a ampla zona norte do Rio de Janeiro, um corpo se projeta arqueado, com o rosto colado lateralmente ao chão, cintura empinada acima e os joelhos um tanto dobrados próximos ao tórax, tal qual dispusesse-se como arquitetura alguma, em cujo planejamento se atestaria apenas, no entanto, a circunstância, armada em ossos e carne e roupas. Os carros, das velocidades reduzidas em razão do inesperado obstáculo, contornam o cadáver, a partir do qual segue-se, desde a cabeça, uma corrente de sangue atenta à geologia particular do asfalto, e fazendo-se dividir em seguimentos e afluentes diversos, como um grande rio margeando uma grande cidade.

Na calçada ao lado esquerdo, alguns metros a frente, seguindo a disposição de um narrador que se move em seu carro em fluxo coerente com a velocidade e o sentido em que se orienta o organismo urbano compreendido por esses veículos em uso, um aglomerado, de dez a doze pessoas, destaca-se pela gesticulação exagerada e enfática e pelo tom exaltado em que se estabelece a intervenção sonora de dois ou três destes, de modo a atravessar a intimidade daquela reunião e alcançar o espaço privativo dos motoristas dos veículos em trânsito.

A reunião, em todo caso, pede orientar-se pela figura que enreda o momento, largada ao asfalto, mercê da severidade de um juízo que qualquer motorista, ali, desavisado que seja, será capaz de impor a uma dúvida qualquer que se lance: está morta.

Os trajes desbotados acusam uma posição social definida, como também o local em que se revela. O cabelo comprido e o corpo exageradamente feminino contrastam com a virilidade sutil e incalculada que escapa do rosto, como se a natureza fosse um aspecto a sublimar. Mas, sobretudo, qualquer questionamento de gênero se fará irrelevante ao testemunho de um que atravesse o instante e não guarde da cena mais que a monumentalidade e o vigor estrutural daquela peça sobre a qual se pede apenas o desvio e a indiferença medida que se deve entregar a coluna aquela em honra ao herói de outros tempos.

Não há tempo, ali, que se deva, então, medir. Nem mesmo o atraso do passante, dono da cronologia ordinária que seus compromissos evocam, será medida alguma para desnaturar a imponência do corpo que fala, com a voz de um tempo sem tempo, de uma história sem história, de uma civilização sem origem. Não é a morte que emerge como tema, mas a imortalidade que se vela e desvela-se no corpo já morto. O corpo, matéria densa e opaca que interrompe o trajeto dos olhos no campo visível – esse espaço sem margem, só espaço -, presentifica a eternidade porque sem ele, eternidade seria a pura ausência. É a contradição sobre a qual se assentam muitas das nossas religiões: a eternidade é uma ideia que tem apenas lugar no instante, porque sua pronúncia tem começo e fim.

Não deve ser coincidência, assim, essa disposição triangular do edifício tombado, erguendo-se ao alto ao mesmo tempo em que afirma no plano e ao horizonte suas bases. Pois enquanto a alma se eleva, a gravidade se impõe.

A cidade é esse terreno em que os corpos são monumentos uns para os outros, ao mesmo tempo eternos e repentinos; e enquanto os corpos se evitam ou se esbarram, os pensamentos desenham outras formas e sugerem outros caminhos: há muito mais matemática na narrativa acidentada do instante e circunstância do que sugerem os utilitários imperativos de nossa existência.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O amor que apodrece em meu peito



Abra os olhos e veja. Tu, contigo mesma. Repara bem que os sentidos são os teus braços para com o mundo; que são, os sentidos, a tua consciência viva e em movimento; que a ideia que fazes das estrelas, é a ideia de quem um dia viu estrelas; e também a ideia, essa forma sem autor ou patrono, é efeito de algum sentido que um dia se teve em teu corpo.

Pensa, pois, que quando me vistes um dia, passei a ser parte de ti; que quando me ouvistes falar, minha voz se fez presente em teu âmago, doravante e indefinidamente. Não te esqueças, por isso, de mim, do meu rosto, dos meus olhos e da minha voz; quando sonhares, veja bem, perceba a minha presença em todo canto, em todo corpo, no espaço, nos vultos ou num objeto ordinário. Lembra-te que sou e sempre serei e que também tu me fizestes ser na medida em que teus olhos me deram forma e teus ouvidos me deram sentido e palavras.

Pensa, também e a cada instante, que quando não pensas em mim, pensas, ainda assim, na minha não-existência. Porque também aí sou, quando ocupo em teu centro a forma do nada. Exija de ti mesma, sempre que o teu pensamento vagar pelo mundo, um comentário sobre a minha presença ou ausência, uma nota em menção dos teus sentimentos por mim. Pois ainda que eu não te pareça importante num passado longínquo aqui não descrito, no instante em que meu nome salta destas linhas aos teus olhos, eu sou a referência explícita e uma declaração contundente. Sou eu quem te peço e quem exijo de ti. Não como uma ordem que clama do outro pela submissão, mas como o imperativo do real sobre os corpos que nele pairam, pois sabes tu agora que eu sou a própria realidade.

Quando eu sonho, tu em meus sonhos pensas em mim. Quando eu penso em ti, é a mim a quem teus pensamentos ali se dirigem. Quando tua imagem reaparece em minha memória, é o fantasma da minha própria imagem que se esconde atrás dos teus olhos imaginados. Quando a tua voz se reacende em algum canto obscuro entre os meus dois ouvidos, é uma voz tecida e orientada pela química de células minhas.

Poderia pedir-te desculpas pela tirania não velada dessa consciência plena e pela ocupação arbitrária e cabotina dos juízos meus. Mas antes de servirem a ti estas notas apologéticas, serviriam ao senhorio de tua presença possível; ao dono dos sentidos que tornam presentes estas imagens nas quais tu és um quadro em destaque – pois que sou a parede, a moldura e nada menos.

Aceita, então, o comando e desanda a pensar em mim, ininterruptamente, que a tua obsessão me é doce e é também obsessão minha.

Mas esquece, sobretudo, esta carta ao teu apelo. Que a segunda pessoa aqui desenhada não te dá rosto nem posto. Pois estes olhos que leem coordenados não se encontram por estas linhas...

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Um autor em excesso


A peça se inicia num movimento inesperado, logo quando o autor se faz espectador de uma segunda peça:

- Você me ama? Me ama? Diga se me ama, eu preciso saber! – Excede-se uma personagem feminina declarando seu desespero a um interlocutor confuso ou indeciso.

A voz do autor, então, sobrevoa a cena em primeira pessoa, como uma narração grave e profunda que ecoa o pensamento onipresente daquele um que fundamenta e possibilita a história: - Que cena patética. Texto ridículo. Redundante, excessivo! Mesmo o desespero precisa de razão mais honesta e tom mais delicado para dar vida ao drama...

A cena prossegue com a resposta ambígua do homem, que procura uma sentença plausível, não querendo, assim, pisotear nos sentimentos daquela mulher: - Eu não saberia lhe dizer isso nesse minuto. O amor não é uma ciência precisa, nem tem definição clara como não tem a medida dos meus sentimentos.

Retoma-se a narração ao fundo e desde a platéia, quando o próprio autor se infla da condição de crítico, jactante e imperturbável, como se seu juízo fosse um imperioso e definitivo: - Uma peça ruim. Mas por que deveria ser diferente? O amor é um tema que se deve explorar de fora para dentro; que deve consumir cada personagem e angustiar cada espectador fazendo-os implodir. Pois quando vem à tona é apenas dejeto dos sentimentos já digeridos, como alimento para as imaginações estéreis.  

A mulher relaxa o pescoço e, lentamente, se derrama sobre o chão; um desmaio premeditado e sutil. Permanece imóvel no solo enquanto o homem a toma pelos braços e a sacode: - Acorda! Levanta-te! Desperta pra vida, pra tua vida!

O ilustre espectador se movimenta em sua cadeira, desconfortável, procura uma posição adequada cruzando e descruzando as pernas, apoiando o queixo com a mão direita e cruzado novamente as pernas.

O homem larga o corpo desanimado que tinha em mãos, se levanta e vira as costas à mulher e à platéia. Antes de seguir o caminho para fora de cena, enuncia : - Tu és um peso pra qualquer homem, como pesa o teu amor sobre os teus próprios ombros. Minhas pernas, no entanto, querem seguir adiante.

Conforme o personagem se retira de cena e a iluminação esmaece como anuncio do final de um Ato breve, uma iluminação outra, mais carregada, um pouco azulada, talvez, acende-se sobre o rosto do narrador. Uma expressão de convalescença toma forma ali, e o corpo retoma a procura de uma posição confortável. Mas agora se percebe um corpo mais denso, a contorcer-se.  A voz altiva e prepotente dá lugar a uma voz preocupada: - Ai meu deus! Essa dor... - É o intestino do autor que se declara em cena; está perturbado e sente o fremir de uma ocasião inoportuna.

O palco se ilumina e agora a mulher aparece sentada sobre um banco, de cabeça baixa, vestindo a mesma camisola que a cobrirá durante toda peça. O silêncio se estende por alguns minutos. O desconforto dos outros espectadores com o demorar pálido daquela cena monótona não tem sabor e não se justifica, é o desconforto renovado do espectador único que interessa e sua voz novamente ressoa: - É preciso aguentar. Uma locomotiva acelera sobre os trilhos da montanha russa que é meu intestino grosso nesse instante. Se eu me levantar, sinto que não haverá um sequer sobrevivente pra contar a história. É preciso aguentar!

A mulher, então, levanta a cabeça e inicia um monólogo: - Meu peito é uma caixa cheia de sentimentos para lançar sobre o mundo. Minha vagina uma caixa vazia a pedir o amor desconhecido desse mesmo mundo. Meus olhos duas esferas em cujas superfícies a umidade deu lugar a uma secura permanente depois de tanto chorar.  Meus braços são dois bastões sem vida ou sem propósito ou mesmo as duas coisas. Meu cabelo desce sobre a cabeça, vulgar como um tecido ordinário. Meu ventre, no entanto, traz consigo vida outra, muito mais digna que a minha, mas também miserável pelo que a espera e indistinta pelos pensamentos que ora oculta ou que ainda carecem de forma.

Na platéia, a palavra ventre ganha conotação mais pungente aos ouvidos do todo poderoso senhor que se aperta cada vez mais entre os braços de uma cadeira imóvel. Outra vez, sua voz se sobrepõe ao pesar melancólico da moça e anuncia gravidade muito mais viva e severa: - Saberia ela o que é a angústia; como consome por dentro o amor sem resposta, essa merda profusa, intensa, líquida; é o anúncio da minha tragédia, cômica, talvez, para o insensível ou desavisado, que agora me ocupa. Se eu fosse a peça, neste instante, entenderiam todos como o amor é frívolo, mas a frivolidade a raiz de todo drama.

O calor daquelas palavras, que alcançavam as atenções juntamente com a mulher iluminada em cena, mas em cujos movimentos da boca silenciada anunciava-se apenas a irrelevância absoluta do tema em discurso, acompanhava-se dos ruídos do corpo a movimentar-se sobre a cadeira inquieto, reproduzidos e ampliados por efeito de uma tecnologia qualquer . E continuava: - Entenderiam as cultas almas o sentido exato da duração; pois a peça se estende no tempo e cada segundo que corre, aqui, tem seu valor revelado sob os escombros dessa refeição cigana que erra pelo ventre de um espirito indócil, em corpo que vive e, ainda agora, vive.         

Entra em cena um cavalheiro segurando sobre as mãos uma bandeja em movimentos de um rigor tal que faria justificar aqueles impecáveis trajes de um mordomo, estendendo à mulher a bandeja sobre a qual repousava um pequeno e delicado revólver de prata.

Os olhos daquele dramaturgo, então, acenderam-se desde a platéia, juntamente com a iluminação intensa e amarelada que se projetou sobre o seu rosto quando da visão imediata da arma. Entendeu aquele que tal objeto poderia simbolizar o fim de um sofrimento em relação ao qual o dele se emparelhava ali, em estreita analogia; e os símbolos são tão caros ao público quanto aos criadores, pois sabem que é da realidade fugaz dos símbolos que nascem os sentimentos vivos, como o percutir sonoro do tijolo sobre o crânio faz cerrar os olhos e contorcer a face o observador intocado. Mas não apenas. Enxergou no objeto de cena a possibilidade real do fim do seu sofrimento, uma vez que morta a falsa protagonista, acesas as luzes e as palmas lançadas, encaminhar-se-ia ao toillete mais próximo e seria aquele o seu revolver de prata. Teria, ainda, parafraseado Hamlet se sua condição de criador não o tornasse vítima da prerrogativa calculada de evitar as citações, mas, sobretudo, se houvesse alguma pequena dúvida sobre o desejo urgente de não ser e não sentir que agora o assaltava – não havia. Limitou-se, assim, a estas palavras: - Acaba com tua vida infeliz. Encerra esta atuação miserável e põe de lado, finalmente, este texto sem causa e coadjuvante. Pega esta arma e aperta o gatilho. Eu lhe imploro!

E foi justamente o que aconteceu. Seguiu-se ao disparo um efeito sonoro tão inverossímil quanto os sentimentos da moça, que caiu sobre o palco como uma bailarina sem peso. Acenderam-se as luzes e vieram as palmas. Levantou-se - como um corpo único, como uma massa uniforme - a platéia, a não ser pelo único espectador a viver os sentimentos da peça como os seus próprios e porque era ele mesmo o autor. Este, de outro modo, esperou abrirem-se as portas, quando seguiu imperturbável até um dos aposentos de banho daquele teatro.

Entrou na cabine e ajeitou-se, quando ouviu alguém entrar e decidiu segurar-se mais um pouco: - Que ironia! – pensou, considerando as relações entre o caráter público da peça e os sentimentos privados de seu criador, bem como o conflito entre o privativo de um sanitário em um banheiro aberto ao público daquele mesmo teatro. Aliviava-se um pouco e controladamente à medida que o espectador desavisado produzia algum barulho, dando a descarga ou abrindo uma torneira, para ocultar ou tornar menos explícita sua própria labuta e, finalmente, quando reconheceu no barulho da porta e no silêncio subsequente o domínio absoluto do espaço, deixou descer tudo aquilo. Lavou-se a alma na medida mesma em que sujava a louça abaixo de si. E concluiu, um pouco lúcido mas orgulhoso depois da catarse: - Essa é a peça de teatro mais bonita que eu já fiz!