terça-feira, 30 de julho de 2013

O olho e o Espírito



Enquanto eu lia, sentado à cama, Pietra adentrara ao quarto e, sem nenhum constrangimento, perguntou-me:

- Você tá lendo? Posso ler com você?

Chamei-a ao meu lado, quando tomou das minhas mãos o livro e concluiu, já depois de folhear as primeiras páginas: 

- Não tem figura!

Curioso que no vocabulário de uma criança de 4 anos, o verbo "ler" indique um atividade tão lúdica e despropositada como a do simples folhear e ver. A mancha textual, que esconde sob a uniformidade do todo mensagem muito mais rica e secreta, nada lhe diz. E por que deveria? Ler sugere uma pesquisa mais meticulosa a partir do contraste definido que as letras impõem sobre o fundo. Pede-se paciência e o conhecimento prévio dos códigos, mas pede-se, sobretudo, que as mãos, que folheiam, obedeçam ao vagar primeiro e ao caminho que traçam os olhos sobre a superfície manchada. Consta que nas crianças dessa idade, entretanto, é o manuseio e o frenesi da experiência do corpo que comandam a prática que sua ingênua linguagem denomina, ainda, “leitura”.

Retomei, então, o livro de suas mãos, indicando não se tratar, como ela poderia haver imaginado, de um livro para crianças. Curiosamente, todavia, e porque o livro fizesse referência a imagens tornadas representativas para a história da arte, trazia em seu miolo algumas páginas destinadas a ilustrar tais referências. Parei, assim, numa página em que se estampava a figura de um bisão, registro parietal dos primórdios da consciência artística da humanidade, gravado na gruta de Lascaux. Apontei para a imagem e lhe disse:

- Tá vendo? Essa é uma das pinturas mais antigas, feita pelo homem, que se tem notícia.

- Que homem? - perguntou ela.

- Não se sabe. Ela é tão antiga que não se sabe o nome do homem ou da mulher que pintou.

Desinteressada, fez cara de quem pouco se importa se o registro em questão nos poderia ajudar a compreender a atividade artística humana e impelida por autoridade muito comum nas crianças de hoje, projetou a mão sobre os meus braços, dando continuidade ela mesma a passagem das folhas até parar-se em um desenho de Matisse intitulado “Artista e modelo refletidas no espelho”. O vazio deixado por aqueles traços sutis e instáveis, levaram-na a questionar:

- É pra colorir?

Desfazendo-me da inclinação pedagógica e com receio de que ela pudesse, no futuro, por-se a rabiscar alguns de meus livros, apressei-me em responder:

- Não, não é pra colorir. Esse aqui é só pra olhar.

E porque, talvez, não houvesse suficiente apelo restritivo naquelas palavras, completei:

- Os livros do tio Bruno são todos pra olhar apenas, nenhum deles é pra colorir.

Olhar apenas, no entanto, não a satisfez, no que se pôs ela, novamente, a virar as páginas, interrompendo a passagem ao chegar em uma reprodução de “Park bei Lu (Zern)” de Paul Klee. O dedo indicador dela lançou-se, imediatamente, e conduziu-se pelos grafismos caligráficos de Klee como se os quisesse reforçar ou confirmá-los, indo de cima abaixo e voltando pelos traçados labirínticos que ensejavam aquela escrita enigmática e perguntou-me:

- É pra fazer os caminhos?

A pedagogia do nosso tempo parece conceder direitos plenos e autonomia irrestrita a experiência corporal primeira. Acaba, assim, dando vazão, talvez desmedida, a ansiedade potencial dessas crianças, entendendo-as como “corpos curiosos” ou dispositivos motores prontos a se por em participação física sempre que atividade intelectual alguma lhes é requisitada. Como se nenhuma autoridade exterior pudesse-lhes fazer cumprir a motivação necessária para uma atenção positiva e determinada que sustentasse, desse modo, um aprendizado prodigioso e rico em conteúdo. Seus problemas não parecem mais ser cognitivos, mas motivacionais. Também a observação introspectiva - com finalidade de projetar na criança um imaginário que lhe sirva de cenário para os aprendizados futuros e a paciência devida à contemplação meditativa, tão importante para a memória e o desenvolvimento cognitivo - parece haver sido relegada ao título de atividade entediante, chata e incapaz de resultar em estímulo ao aprendizado.

Não é de estranhar que boa parte da arte de nosso tempo evidencie essas mesmas características, tratando seu público com o mesmo didatismo motivacional que encontramos nos modelos pedagógicos mais modernos. Alegando-se “propositiva”, convida-nos a participar menos com nossos olhos e observação diligente e reflexiva que com a prerrogativa de que a experiência deve nos entreter ou fazer-nos sentir “inclusos” no processo, como se apenas essa redução literal da distância entre o público e a obra justificasse acesso ao seu conteúdo, forma e propósito. Pedem-nos que entremos em espaços armados de artifícios e efeitos, que nossa presença em corpo seja o imperativo de uma experiência de comunhão criativa, como se nos fosse concedida margem criativa alguma nesses modelos e esquemas que somos impelidos - senão obrigados - a seguir.

Há também os que, segundo essa mesma disposição participativa, tenham se equivocado em contexto, à exemplo daquele famoso caso em que um visitante marcara uma pintura de Miró, nas instalações do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, usando tinta e sua mão como carimbo. Poderíamos imputar ao engano desse senhor ou senhora apenas a ocasião de uma anacronia circunstancial uma vez que a pintura em questão se havia concebido em época em que vigoravam outros preceitos, não fosse o prejuízo material tão significativo. O caso é que não há experiência nenhuma que pague os dividendos de uma contemplação demorada e de corpo ausente; apenas "olhar por olhar" e ver no que se olha aquilo de que o corpo não é premissa; o distanciamento decisivo a partir do qual nos é admitido fazer parte da experiência apenas porque existimos e pensamos.  

Cabe agora determinar, de todo modo, se esse rancor para com a pedagogia hodierna é, de fato, resultado da deslocalização temporal em que sugiro me incluir, não como saudosista simplesmente, mas como convicto de que o futuro não deve cindir com o passado apenas por conta de uma orientação sucessiva - que deve haver no passado modelos eficientes como os que serviram a educação de tantos gênios (ou seria o caso da nova orientação preocupar-se ainda mais com a premissa de não educar gênios?) - ou se se trata apenas da preocupação excessiva antecipada para o caso de meus amados livros aparecerem rabiscados e coloridos, como se gênio nenhum nessas velhas almas e nesses escritos fosse mais louvável que o gênio hiperativo de uma criança com lápis de cor empunhado.

- É pra fazer os caminhos? - Ela me perguntou, séria.

- É! Mas apenas com os olhos e o pensamento.

Foi a resposta que eu tive ao alcance.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Brecht para baixinhos




Eu, sentado no sofá em frente a um Pedro sério e cheio de autoridade que me observa de uma cadeira giratória com ares de oficiosa.

Pietra, segurando um coelho de pelúcia (supostamente seu filho), faz menção a sair do quarto (supostamente a casa) para levar o "filho" à "escola".

Nisso, seu "marido" (Pedro) dirige-se a ela, sem desviar o olhar que me enfrenta, e dá seu aval: "Vai! Enquanto isso eu converso aqui com seu tio." - E me convoca à brincadeira em referência cruzada sem que se desfaça a diegese que nos reúne no recinto: - "Você é tio dela, tá?"

Pietra, que já havia se retirado, retorna, em vista da necessidade de direção que se faz evidente, e me orienta: "Finge que você é meu dindo, tá?"

Eu, porque não pudesse deixar a realidade de lado (e não por entrega absoluta ao personagem, diga-se de passagem), afirmo: "Mas eu sou seu dindo!"

E ela: "Então, finge que você é meu tio!" - Eu, ainda: "Mas eu sou seu tio!"

Como alternativa última e uma vez a realidade sendo demasiado bruta e não suficientemente promíscua para dar conta das aspirações e nuances de seu imaginário, define assim: "Finge, então, que você é meu irmão!" - E sai do quarto para onde deverá voltar uma vez deixado o coelho na escola.

˜Tomara que ela volte logo!" - Pedro exclama, talvez, na ocasião de um desconforto fictício do anfitrião que é deixado à função de "fazer sala".

Eu, já então sugerindo entregar-me à peça, mas sem abandonar o cinismo adulto que me molda o caráter, faço a sugestão: "Vamos falar de economia, então?"

"O que é economia?" - coloca-me, Pedro, a par de sua honesta ignorância sobre o assunto, sem reconhecer que este lhe deveria ser familiar na posição, que ora ocupa, de homem da casa.

Tento explicar-lhe: "Quando sua mãe vai comprar comida, ela precisa de dinheiro. Por isso, vai todos os dias trabalhar, pois, no final do mês, alguém dará a ela dinheiro em troca desse trabalho. E todos, precisando de dinheiro, precisam trabalhar - a não ser aqueles que dão o dinheiro, pois eles recebem o dinheiro a custa das pessoas que trabalham para eles. Bom, o conjunto de todo o dinheiro, o dos que trabalham, como a sua mãe, mas também o dinheiro daqueles que não trabalham, como aquele que paga a sua mãe pelo trabalho que ela faz, isso é a economia."

Ele me olha por alguns segundos e se coloca a disposição de aceitar a minha explicação, com uma pequena condição: "Mas a comida é de mentira, tá?"

"Por que?"- eu pergunto.

E ele: "Pra não sujar a casa, ué!"