domingo, 9 de junho de 2013

Sobre atrizes e atores ou Mente melhor quem fica calado.


Uma mulher e dois homens conversam na calçada de uma esquina, em frente a um bar, numa quarta-feira sem muito movimento naquele estabelecimento, sob a iluminação amarela e precária de um poste de luz, por volta das 2:30 da madrugada.

A mulher, um tanto elegante sob uma jaqueta de couro preto vestida por cima de uma camiseta de botões de um tecido fino, com o cachecol enrolado com pompa ao pescoço, gesticulava enquanto dizia aos seus dois interlocutores:

- Mamãe tinha aquele apartamento enorme no Jardim Botânico. Lembra, G.? – lançou olhar a um dos homens que estavam consigo e continuou – Eu dava aquelas festas incríveis quando ela viajava. Saudades daquele apartamento...

G., que aparentava ser apenas um pouco mais velho que a mulher, em cuja elegância e expressões faciais se poderia apoiar a sugetão de que tinha cerca de 40 anos de idade, confirmou com ela as lembranças do antigo apartamento ao se dirigir ao terceiro com alguma intimidade e legítima satisfação:

- O apartamento da mãe dela era um sonho. Quatro quartos, uma sala gigantesca e dois banheiros lindos. – bebeu um gole da taça de vinho que tinha na mão – Transei e cheirei muito naqueles banheiros – completou.

Ela, antes que ele recuperasse o fôlego depois da última fala, iniciou nova narrativa:

- Lembra daquela vez que alguém quebrou uma pia, fudendo ou sei lá o quê? E no dia seguinte mamãe chegou, entrou no banheiro e saiu sem dizer nada, com sangue nos olhos...

- Acho que foram Marcos e Ney – interrompeu G. com sincronia a fala dela, que prosseguiu – Foram eles mesmo? Não sei. Sei que mamãe chegou, entrou no banheiro pra tomar banho, saiu de cara fechada e não falou nada comigo durante umas 2 horas.

O terceiro perguntou com honesto interesse: - Que desculpa você deu a ela?

- Desculpa?! Minha mãe nunca foi burra, e se tem uma coisa que deixava ela fora de si era mentira mal contada. Por isso, quando uma coisa dessas acontecia, eu evitava mentir. Só fazia se tivesse um álibi muito razoável. – Logo assim que a fala da mulher terminou, num ritmo que poderia fazer aquilo parecer uma cena de filme, um taxi parou do outro lado da rua e buzinou seco duas vezes. Os três olharam para o carro e depois entre si, não reconhecendo, contudo, a razão daquele sinal.

O motorista do táxi abriu a porta do carro e se levantou esbaforido e entusiasmado, vindo em direção a mulher. Era um sujeito baixinho, careca, com bigode grisalho, aliás, da cor dos cabelos que ainda lhe restavam ao redor do cucuruto. Trajava calça jeans e um suéter listrado que lhe ia por dentro de um cinto marrom da cor dos sapatos. Parou-se em frente a mulher , esticando as mãos até seus ombros e segurando-os com firmeza, quando se pode ver um relógio prateado de ponteiro em seu punho. Exclamou, então: - V.?!

Ela, sem ainda reconhecer o cinquentão, mas se esforçando sem gratuidade alguma por fazê-lo, já que o senhor sabia seu nome e quando o disse alguma intimidade parece lher ter saltado com honesta simpatia através dos olhos, balançou a cabeça como se perguntasse sem jeito ao homem pelo seu nome.

- J.! J. Barcelos! Não lembra de mim?! – disse o senhor.

Alguma ideia na cabeça de V. parecia trabalhar em busca da memória perdida, mas antes que ela pudesse encontrar o homem se adiantou: - Estudamos juntos na CAO! Turma de 95, lembra?

- J.! – Devolveu ela o reconhecimento, aliviada. – Quanto tempo?! Nossa, deve fazer uns 10 anos que não te vejo.

- Quatorze e alguns meses - corrigiu ele, acrescentando, ainda, com um ar forçado de desleixo – mas quem tá contando, né? - e seguiu com a conversa – E você? Como tá? Ainda atuando?!

- Nada J. Parei de atuar há alguns anos. Faço, de vez em quando, uma ponta aqui e ali em trabalhos de amigos, mas só pela camaradagem. – Disse ela.

- Poxa, e tem feito o quê nesse tempo? – perguntou indiscritamente.

Ela: - Trabalho com produção.

- Teatro, cinema?! – seguindo com o inquérito.

- Teatro, eventos, festas... Todo tipo de produção. Mas e você, dirigindo táxi? – E nesse momento sentiu-se no ar um jogo de forças estranhas, onde as perguntas pareciam se estabelecer conforme disputa em que se deveriam , V. e o senhor, afirmar, numa projeção dos anos que se passaram desde seu último encontro, como bem sucedidos profissionais desde o ponto de vista crítico de cada um. Os dois homens ao lado de V., alheios ao diálogo que tomou lugar, limitavam-se a sorrir e balançar a cabeça conforme se exigia deles alguma presença de espírito.

- Continuo atuando. Tô fazendo um curta agora. Esse visual aqui é pro filme – e passou a mão sobre a cabeça e no rosto, sob o nariz, indicando a cabeça calva e o bigode. – Um curta do M. Karini, conhece ele? – e deu apenas meio segundo (o tempo para recuperar o ar perdido durante a fala ininterrupta) interrompendo uma negação iminente da parte dela, continuando a fala – O táxi é só um bico, mas é um laboratório incrível. Você conhece todo o tipo de gente, gente real, verdadeira. Eu acho que interpretação é isso. Você tem que beber nas ruas. Naturalismo é interpretar como vivem as pessoas comuns, a prostituta, o cafetão, o playboy, o advogado... – Nesse momento, G. e o terceiro se entreolharam. G. deu mais um gole em seu vinho e voltaram os dois novamente as vistas ao senhor, sem que nenhum julgamento mais estreito tomasse forma aparente. O homem continuou em seu monólogo, enquanto V. lhe endereçava um sorriso artificial e honesto ao mesmo tempo, pois não queria de fato sorrir, mas não tendo antipatia alguma por aquele senhor, pedia-se ali que sorrisse como sinal de acolhimento: - Outro dia, imagine você, eu tava passando ali por Ipanema, em frente aquele restaurante italiano. Sabe aquele?! Do mesmo dono daquele hotel no Leblon?! Enfim, advinha quem fez sinal pro meu táxi? Tony Ramos! Ele entrou, falou que tava indo pra Barra da Tijuca e eu ali, taxista, sem sair um momento do personagem. Falei pra ele “conheço o senhor de algum lugar, o senhor não trabalha na televisão?”, ele bufou e me respondeu meio impaciente “trabalho sim, sou ator”. Você acredita nisso? Realismo puro. Fui puxando conversa a viagem toda, assuntos banais, ele meio irritado durante todo o trajeto. Em nenhum momento imaginou que eu também fosse ator. Curioso né? Essas coincidências da vida...

G., a essa altura já dirigia atenção para um grupo de garotões que havia parado ao lado deles há alguns minutos, enquanto o terceiro pensava consigo: “Qual a coincidência? O Tony Ramos pegou um táxi. E aí?”. V. começava a sentir-se desconfortável com a narração e a performance do antigo colega ao ponto que o sorriso já não mais se sustentava, deixando no lugar apenas uma boca um tanto distorcida, porque ela também já não tivesse a medida do gesto que articulavam os lábios.

O senhor, sentindo o enfado que se armava, onde já não houvesse outro interlocutor interessado que não ele mesmo, olhou ao relógio e disse: - Bom, tenho que ir. Fechar o ponto do dia. Pago 120 reais na diária desse carro, acredita?

V., solidária a inconformidade de J., exclamou: - Nossa! – e em seguida pediu ao colega um cartão, fazendo referência ao fato de que volta e meia precisava de táxi. Ele abriu a carteira de couro marrom, em combinação com o cinto e o sapato, tirando dali um cartão que entregou a ela. Abraçou-a e se despediu com essas palavras: - Muito bom te ver. Temos que marcar alguma coisa algum dia. – Ela confirmou a convenção com polimento: - Vamos marcar sim!

O homem entrou no táxi, acenou com uma buzinada sutil e seguiu seu caminho.


V. retomou a atenção aos dois colegas e perguntou: - Sobre o que falávamos?! – Os dois pensaram um pouco e, em sincronia, fizeram menção a história do antigo apartamento da mãe de V. no Jardim Botânico, mas como o assunto já estivesse esgotado, virou-se para o terceiro e disse: - E você B.? Fala alguma coisa você. Você tá aí caladão, não falou quase nada a noite inteira.

Nenhum comentário:

Postar um comentário