quinta-feira, 18 de abril de 2013

À la carte (les lettres)


Palavra menos digna que a da língua o gosto
É aquela que me cerca como a vida crosta
Numa indecisa métrica entre vocativo e aposto
Sabe a camarão, caranguejo ou, quiçá, a ostra?

Foram essas palavras que se lançaram à mesa onde um senhor de fraque e uma jovem impecavelmente vestida encaravam um sumptuoso prato em que uma lagosta rubra e brilhante se dispunha ao centro de algumas verduras e legumes cenograficamente organizados. O homem e a jovem, atônitos, olharam-se quando, não sem algum despeito, o homem reclamou em voz alta a presença do maître:

- O senhor está vendo isso?! - Disse ao, então, presente e atento a sua inconformação.

- A lagosta não está ao seu gosto, senhor?

- Sabe a camarão, caranguejo ou quiçá a ostra? é isso que tem vosso estabelecimento a oferecer a mim, eu, homem de textura culta, do sabor eleito? É isto que chamais de erudição gastronômica e ofereceis a um partido, como eu, eivado em aristocracia e tecido na seda da autoridade e classe nobres?

- Desculpe-me, Senhor. Devolverei imediatamente o prato ao chef . Espero que o senhor possa perdoar nossa falha seleção.

Disse o maître, uma vez que não parecia haver falta evidente no preparo e composição visual, tal como uma pintura de corte houvesse sido projetada sobre a bandeja e posta a repousar sobre a mesa, inclinada a uma iluminação que fazia lembrar o barroco espanhol no aveludado vermelho das dobras do crustáceo como nos tecidos representados por um Murillo ou no detalhismo presente à volta, fazendo de cada elemento um personagem como faria o próprio Velasquez; também no aroma a obra pareceria digna ao mais sensível florista, em equilíbrio delicado que se apresentava entre o temperado ousado das ervas e o suave natural vegetante; do sabor, em todo caso, não poderia haver reclamação alguma, dado que o prato voltou à cozinha sem que nenhuma língua o houvesse tocado nem que dente algum houvesse imposto sobre a superfície do alimento sua força e seu movimento. Deveria, então, deduzir um funcionário esclarecido como aquele, que a matéria-prima não estava de acordo, pois iguaria como aquela, referência maior de refinamento e bom gosto, deveria assim criar menos com paixão que com virtuose, mais afeita aos preciosismos métricos que ao fulgor fonético das aliterações.

“Pobre chef” - pensou o maître no caminho de volta à cozinha. Pois àquele, cada pedido retornado era como um fracasso maior que a própria função a ele competida, como um pai a quem é dado testemunhar a inépcia do filho amado, sobre quem tanto se teve investido em orientação diligente e zelo e afeto.

Antes de chegar ao cozinheiro, a quem entregaria o prato e repreenderia indulgente por força da ocupação que o impendia, passou pela copa onde alguns funcionários se preparavam para uma refeição vulgar e sem prumo: pernas de frango e batatas que entre o alcance das mãos e as mordidas alternavam palavras em alturas irregulares que soavam como melodias contemporâneas - o atonalismo de um Schoenberg ou o ruído movimentado das ruas - mas em cujo conjunto seria possível entrever sintaxe mais definida e sentido mais vivo: “Carne-torta-faca-corta-sorte-volta-morte-luta-marta-minha-amada” ou “Singra-folha-caldo-sebo-sal-e-rolha-horta-pata-perto-calha-querida-minha-amália”.

Sentiu-se, o maître, enjoado com a sonoridade que exalava daquela mesa onde os brutos se alimentavam de tão ordinário conteúdo e apressou o passo para fazer-se distante da gente aquela. Chegou ao chef a quem estendeu o prato com a lagosta, apoiou-o no balcão a sua frente e esperou pelas considerações do mestre de cozinha.

- O que houve? - perguntou direcionando os olhos ao crustáceo como se a ele fizesse sua indagação. E tão logo deu-lhe os ouvidos. Repetindo as palavras mesmas empregadas há poucos minutos no salão, sobre a mesa, o poeta-lagosta fez se apresentar ao tutor e íntimo colega:

Esta é a página derradeira em que me inscrevo
Veis? Sou sobre o prato o que vossa postura reclama
A nota sem rima de uma tragédia em relevo
Esse túmulo úmido e liso que vossa fome lê “cama”

Mas se é isto o que sou que quereis conhecer
Desta carne iletrada da qual o sabor é saber
Entrego-vos estas sob os olhos sisudos do vosso desejo

Lerdes, pois, com os ouvidos aquilo que encanta
Com as papilas o livro que lhe desce à garganta
Sou aos dentes comida, mas há em toda boca um beijo

Tem nome o sabor e sabor esse nome?

Palavra menos digna que a da língua o gosto
É aquela que me cerca, como a vida, crosta
Numa indecisa métrica entre vocativo e aposto
Sabe a camarão, caranguejo ou quiçá a ostra?

Arregalou os olhos que se encheram de lágrimas em poucos segundos. As lágrimas eram, contudo, ambíguas. Chorou, a um tempo, emocionado e desesperançoso, sensível ao gênio e inconformado à demanda. Sabia daquela lagosta a honestidade que lhe escapava da carne pelas frestas da casca. Não foi a primeira vez e não seria a última ocorrência de um talento assim desperdiçado simplesmente porque o cânone classista pedia apego à norma técnica e a mesura à promíscua da muda tradição ataviada.

Lembrou-se, então, de um soufflé de amoras que certo dia serviu, de cujas palavras só restou a memória desse um cozinheiro frustrado, não com a arte sua e a da sua cria imediata, mas com o insípido dos juízos que vieram a ter à mesa com aquela sobremesa um pouco doce, mas, sobretudo, ousada e cheia de nuances, rejeitada pelos critérios insubstâncias do Conde de Maricá, que à altura, desviara o olhar da mesa, exigindo a retirada imediada do pospasto quando ouviu estas palavras: 

Tem coração a fruta que é
por ser apenas: como forma
de cuja cor não se vê a fé
que é somente fibra e norma?

Há redenção alguma em ovos
das claras batidas senão à martelo
cuspindo gastos gostos novos
rendido à tradição pequena o belo?

Pergunta! Eu te exijo
Porque é na dúvida
essa sobremesa inculta
que tem nome um regozijo

Desfruta, então, o mel ambíguo
doce, amargo, salino e acre
pois sem juizo, sabor tem lacre
que gosto tem, meu caro amigo?

Que gosto tem...?

Como naquela vez - quando tal genialidade indesejada houvera sido substituída por uma torta qualquer disposta a descrever meramente ingredientes, ainda que em versos Alexandrinos com cesura mediana - também agora o mestre se via submetido a função na qual ele não era senão um burro de cargas, um entregador de pizzas ou um vendedor de bíblias. Ele mesmo, mais um pedagogo que um artista, antes incumbido por dar nome e contexto a expressão de seus discípulos que de propriamente fornecer-lhes a mágica e o instinto, não se via como o criador resoluto, idêntico a si mesmo, artista e gênio, mas antes satisfazia-se  com a ideia de sua imprescindibilidade no processo de amadurecimento daquelas almas vagas que se expressavam na sua própria entrega a digestão de homens letrados e sensíveis. A rejeição de um prato absolutamente original como aquele era um duro golpe para aquele senhor, de amor próprio já muito escassamente acumulado.

Decidiu, então, que prepararia sua última refeição naquele estabelecimento, oferecendo-a em retorno à desaprovação daquele aristocrata e sua acompanhante. Pediu ao maître que anunciasse aos endereçados a solução de seu caso, convidando-os a esperar pela nova obra.

Alguns minutos depois, a bandeja seguiu coberta da cozinha à mesa onde foi posta com todo cuidado e delicadeza. Uma pausa categórica do servente antes de destampar o prato deu classe e drama também ao serviço e entrega, como os ornamentos acintosos de uma moldura talhada ainda quando as atenções devem priorizar seu interior. Inclinou-se, em seguida, sobre a mesa e deslocou ao alto a tampa da bandeja num gesto rígido e preciso.

Viu-se, então, uma pequena cebola em conserva cortada ao meio e antes que uma reação qualquer se sobrepusesse àquela apresentação, uma voz úmida, rouca e pouco volumosa se lançou da bandeja aos ouvidos presentes:

Comei com a boca
que estes ouvidos
enganam-vos.