quinta-feira, 24 de outubro de 2013

322: Ribeira

Vira o rosto.

O homem está sentado. O tronco e os membros em estado de inércia com o espaço próximo ao redor enquanto observa ao longe o movimento diante dos seus olhos. Uma imagem distante se desenrola num outro plano, o que faz dele uma presença ausente: seu corpo não é medida alguma pr´aquilo que os olhos vêem. Um enorme ecrã se estende conforme o movimento o faz ocupar, contínuo e aos pedaços, o espaço da sua visão. Segue como uma tela única constituída da justaposição dos muros de propriedades diversas, seccionada pelos portões encrustados e pela obstrução da visão que se faz eventual no trajeto que se segue como uma linha colateral daquela em que ele mesmo se encontra sobre e percorrendo, em cujo título se atesta avenida tão grande quanto o país do nome que carrega.

Rabiscos, desenhos, mensagens cobertas de tinta e agora ilégíveis. A caligrafia anônima a olhos leigos se ajusta ao cinza concreto, matéria bruta da qual é feita a película. Mas a atenção é uma espectadora incansável a encontrar alimento nos dejetos que lhe atiram à face. 

Quando começou?

Qualquer cineasta em resposta lhe poderia dizer que, como em um filme qualquer, começou num movimento; quando deixou de ser vida e passou a pura observação; quando o não-filme deu lugar ao seu objeto de negação; quando a atenção resoluta tomou a si o enquadramento. Agora, o prólogo ultrapassado dá lugar a uma leitura que pede ser decifrada: “Búzios e cartas: tel. ####-4881”, estampada por cima da pintura branca sobre o muro, que serve de rótulo à mensagem. O prefixo está oculto sob a sombra de um veículo de carga estacionado a frente do número e em movimento em acordo com a imagem.

O espectador sente-se lesado pela informação ausente e procura em vão resposta no reencontro com a imagem passada, uma vez que ela se foi e deixou na memória apenas aquilo que foi: é a ocultação mesma que se expõe como cena e legenda. Mas o que será destas cartas e destes búzios sem um número de telefone visível e referencial? Pede o enredo que seja real; que um número dado ofereça acesso, a qualquer um que deseje, à realidade que habita aquele código representado. Não se trata apenas do naturalismo vazio ou do detalhamento burocrático, é a diegese mesma da obra que está em jogo; como faz o ator ficção a partir dos sentimentos reais; reais como objetos de cena, filmados apenas porque existem de fato. Mas é também o juízo de um gesto de ocultação deliberado ou de algum modo intencional que o faz procurar ali sentido intrínseco.

Mais tarde, a frase reaparece sobre a extensa muralha e é possível reconhecer um 2 transbordando por detrás de uma barraca de vendas, permanecendo não visíveis os números restantes daquele prefixo. Sabe agora, no entanto, que há um enredo em desenvolvimento a espreita por conclusão. Não se furtará um apenas segundo em que a atenção não seja o escrutínio de uma busca orientada e diligente que haverá logrado alguns minutos depois: “Cartas e búzios: tel. 2462-4881”.

Tal imagem sugere, então, presentificar o futuro não apenas porque faça menção a um artifício suposto qualquer de adivinhação ou simpatia oferecido como serviço, mas porque o prefixo do telefone anuncia a região de destino daquele observador em deslocamento. Mas o futuro não é personagem eficaz no drama que tem como público um homem céptico e desesperançoso como ele. Ao contrário, é a sensibilidade já gasta a assombrá-lo por trás dos olhos quando retoma da memória uma frase que via com frequência sobre muros como aquele há pelo menos 15 anos. No momento, quem sabe, escondida sob a pintura branca do novo jargão: “Quércia vem aí!”. 

Jogam-lhe na cara um futuro em vista e ele não toma dele senão o passado arqueado.

Como na máxima de agora, aquela outra anunciava uma profecia. Mais uma, em seguida, será lançada como previsto no decorrer do trajeto: “Cartas e búzios - trago pessoa amada em 3 dias”. Mas a pessoa amada, exatamente como Quércia, não virá. E se o homem nunca acreditou em Quércia - pode mesmo ter se dado por satisfeito com a ausência do figurão exortado -, tampouco o amor lhe parece destino plausível e desejado. Porque sabe, sobretudo, que não é o destino que a viagem de ônibus traz como recompensa a celebrar aquela obra cronometrada que vivencia, mas o trajeto atrás de si que o viajante deixa como pagamento. O registro insignificante do tempo perdido. Pediria, ainda, que a história imortalizasse o caminho percorrido e lhe justificasse o tempo desperdiçado, mas a história tem desígnios maiores e mais dignos. O que lhe resta é, então, o pesar melancólico de um descanso póstumo como consolo.

Pois enquanto a experiência viva anuncia o destino laureado da superação do espaço; enquanto a mensagem anuncia o final feliz muito antes do final iminente; o herói a caminho e o amor que espera, como o Cristo ressuscitado diante dos fiéis, no terceiro dia; sabe que, tanto quanto o filme é movimento, o destino final é a morte.

E não será preciso jamais perguntar quando acabou.
 

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O homem e os homens


Somos.

Uma das frases mais lindas da língua portuguesa, não apenas por sua simetria, mas em particular pelo fato de resumir-se a uma palavra. Mencione-se, ainda, em favor desse juízo, que o sujeito da frase, sendo aquele que enuncia, faz-se imperativo da síntese em que é ele também o enunciado. Some a isso a razão de que, definindo-se o sujeito na unidade de uma sentença tão poderosa, quase se deixa escapar que é, na verdade, na pluralidade em que resta sua semântica. São sujeitos a enunciar e a serem enunciados - a enunciarem-se.

Aquele que ouve palavra-frase como essa deve estar atento e vigilante, porque não há ali apenas uma apresentação vulgar; quando é a voz plural em uníssono que toma o palanque tal qual o canto gregoriano de homens que se submetem a uma vontade maior, o ouvido que escuta silencioso, que ocupa lugar na platéia sozinho com seus pensamentos, deve abaixar suas armas, sabendo não existir espírito guerreiro algum capaz de vencer sozinho batalha que não é sua e em vista da qual este é apenas um obstáculo a ser superado.

O vigor dos corpos ressoa com sua marcha voluntariosa e a dureza do chão abaixo de seus pés não é senão o abrigo por excenlência dessa vontade. Mas é o som que emana de sua boca que prefigura a retidão do destino a sua frente: sua causa. Derrubará muros, destruirá castelos, atravessará oceanos ser for preciso, enquanto ao seu redor indivíduos imperturbáveis celebrarão sua ignorância e, com o rigor de suas limitações, revogarão a estes corpos o direito a serem também indivíduos, como o são estes que julgam, com os traseiros sentados e atados sobre o assento particular: um ponto preciso no espaço descrito pelos acentos e números de latitude e longitude e de suas contas bancárias.

Mas a palavra, ao contrário dos corpos que seguem o curso de sua marcha, não sucumbirá sob os escombros da guerra. É a palavra, outrossim, quem diz da guerra o horror ou sua beleza. Não há um só elogio às guerras que não se oriente na razão de que são homens que a tornam possíveis, jamais indivíduos. Mas apenas porque tais elogios são obras de indivíduos e não de homens, que soam e soarão impróprios, como a hipocrisia que se acomoda no fato de que são também os homens as vítimas do terror dessas guerras e não seus antagonistas autodeclarados.

O que diferencia, afinal, indivíduos de homens é o fato de que enquanto os primeiros são incapazes de reconhecer-se num outro, os homens são, simplesmente. Aceitam a alcunha com a mesma presteza que se dispõem e se empenham à coletividade. No entanto, é com essa mesma presteza e disponibilidade incauta que os homens se comportam como indivíduos ao lançarem-se contra e sobre a causa de outros homens. A palavra é uma arma inconsequente se os homens que a empunham não conhecem sua natureza e significado. Indivíduos dirão ser essa a fraqueza dos homens, estes inaptos ao conhecimento e desprovidos que são da incondicional razão, esse princípio diáfano e sem curvas. Dirão, ainda, que as causas são apenas forças-limite, ou as ânsias desmedidas de um grupo concentradas em currais estreitos e prontas a servirem-se do direito de outros como glutões a fartarem-se do alimento disponível apenas porque disponível se encontra.

Esquecem-se, todavia, que assim como há a razão antes da causa, há também e sempre causa antes de uma qualquer razão. A razão, com efeito, não é unidade alguma antes que homens tenham tornado a unidade possível clamando como um a condição de todos. Estes inconciliados senhores se devorarão amiúde e impiedosamente enquanto não puderem ser um e outro e ao mesmo tempo indivíduos e homens; que são distintos em suas condições, mas cumprem destino comum.


Desconsiderar o caminho do todo às partes tanto quanto o outro possível das partes ao todo é não estar apto a reconhecer a sublime revelação e inocente ignorância que pulsa nos corpos daqueles que se entrincheiram sob uma mesma palavra. Como há também beleza e cinismo nas palavras muitas que se alçam afora de discursos de um só.   

terça-feira, 30 de julho de 2013

O olho e o Espírito



Enquanto eu lia, sentado à cama, Pietra adentrara ao quarto e, sem nenhum constrangimento, perguntou-me:

- Você tá lendo? Posso ler com você?

Chamei-a ao meu lado, quando tomou das minhas mãos o livro e concluiu, já depois de folhear as primeiras páginas: 

- Não tem figura!

Curioso que no vocabulário de uma criança de 4 anos, o verbo "ler" indique um atividade tão lúdica e despropositada como a do simples folhear e ver. A mancha textual, que esconde sob a uniformidade do todo mensagem muito mais rica e secreta, nada lhe diz. E por que deveria? Ler sugere uma pesquisa mais meticulosa a partir do contraste definido que as letras impõem sobre o fundo. Pede-se paciência e o conhecimento prévio dos códigos, mas pede-se, sobretudo, que as mãos, que folheiam, obedeçam ao vagar primeiro e ao caminho que traçam os olhos sobre a superfície manchada. Consta que nas crianças dessa idade, entretanto, é o manuseio e o frenesi da experiência do corpo que comandam a prática que sua ingênua linguagem denomina, ainda, “leitura”.

Retomei, então, o livro de suas mãos, indicando não se tratar, como ela poderia haver imaginado, de um livro para crianças. Curiosamente, todavia, e porque o livro fizesse referência a imagens tornadas representativas para a história da arte, trazia em seu miolo algumas páginas destinadas a ilustrar tais referências. Parei, assim, numa página em que se estampava a figura de um bisão, registro parietal dos primórdios da consciência artística da humanidade, gravado na gruta de Lascaux. Apontei para a imagem e lhe disse:

- Tá vendo? Essa é uma das pinturas mais antigas, feita pelo homem, que se tem notícia.

- Que homem? - perguntou ela.

- Não se sabe. Ela é tão antiga que não se sabe o nome do homem ou da mulher que pintou.

Desinteressada, fez cara de quem pouco se importa se o registro em questão nos poderia ajudar a compreender a atividade artística humana e impelida por autoridade muito comum nas crianças de hoje, projetou a mão sobre os meus braços, dando continuidade ela mesma a passagem das folhas até parar-se em um desenho de Matisse intitulado “Artista e modelo refletidas no espelho”. O vazio deixado por aqueles traços sutis e instáveis, levaram-na a questionar:

- É pra colorir?

Desfazendo-me da inclinação pedagógica e com receio de que ela pudesse, no futuro, por-se a rabiscar alguns de meus livros, apressei-me em responder:

- Não, não é pra colorir. Esse aqui é só pra olhar.

E porque, talvez, não houvesse suficiente apelo restritivo naquelas palavras, completei:

- Os livros do tio Bruno são todos pra olhar apenas, nenhum deles é pra colorir.

Olhar apenas, no entanto, não a satisfez, no que se pôs ela, novamente, a virar as páginas, interrompendo a passagem ao chegar em uma reprodução de “Park bei Lu (Zern)” de Paul Klee. O dedo indicador dela lançou-se, imediatamente, e conduziu-se pelos grafismos caligráficos de Klee como se os quisesse reforçar ou confirmá-los, indo de cima abaixo e voltando pelos traçados labirínticos que ensejavam aquela escrita enigmática e perguntou-me:

- É pra fazer os caminhos?

A pedagogia do nosso tempo parece conceder direitos plenos e autonomia irrestrita a experiência corporal primeira. Acaba, assim, dando vazão, talvez desmedida, a ansiedade potencial dessas crianças, entendendo-as como “corpos curiosos” ou dispositivos motores prontos a se por em participação física sempre que atividade intelectual alguma lhes é requisitada. Como se nenhuma autoridade exterior pudesse-lhes fazer cumprir a motivação necessária para uma atenção positiva e determinada que sustentasse, desse modo, um aprendizado prodigioso e rico em conteúdo. Seus problemas não parecem mais ser cognitivos, mas motivacionais. Também a observação introspectiva - com finalidade de projetar na criança um imaginário que lhe sirva de cenário para os aprendizados futuros e a paciência devida à contemplação meditativa, tão importante para a memória e o desenvolvimento cognitivo - parece haver sido relegada ao título de atividade entediante, chata e incapaz de resultar em estímulo ao aprendizado.

Não é de estranhar que boa parte da arte de nosso tempo evidencie essas mesmas características, tratando seu público com o mesmo didatismo motivacional que encontramos nos modelos pedagógicos mais modernos. Alegando-se “propositiva”, convida-nos a participar menos com nossos olhos e observação diligente e reflexiva que com a prerrogativa de que a experiência deve nos entreter ou fazer-nos sentir “inclusos” no processo, como se apenas essa redução literal da distância entre o público e a obra justificasse acesso ao seu conteúdo, forma e propósito. Pedem-nos que entremos em espaços armados de artifícios e efeitos, que nossa presença em corpo seja o imperativo de uma experiência de comunhão criativa, como se nos fosse concedida margem criativa alguma nesses modelos e esquemas que somos impelidos - senão obrigados - a seguir.

Há também os que, segundo essa mesma disposição participativa, tenham se equivocado em contexto, à exemplo daquele famoso caso em que um visitante marcara uma pintura de Miró, nas instalações do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro, usando tinta e sua mão como carimbo. Poderíamos imputar ao engano desse senhor ou senhora apenas a ocasião de uma anacronia circunstancial uma vez que a pintura em questão se havia concebido em época em que vigoravam outros preceitos, não fosse o prejuízo material tão significativo. O caso é que não há experiência nenhuma que pague os dividendos de uma contemplação demorada e de corpo ausente; apenas "olhar por olhar" e ver no que se olha aquilo de que o corpo não é premissa; o distanciamento decisivo a partir do qual nos é admitido fazer parte da experiência apenas porque existimos e pensamos.  

Cabe agora determinar, de todo modo, se esse rancor para com a pedagogia hodierna é, de fato, resultado da deslocalização temporal em que sugiro me incluir, não como saudosista simplesmente, mas como convicto de que o futuro não deve cindir com o passado apenas por conta de uma orientação sucessiva - que deve haver no passado modelos eficientes como os que serviram a educação de tantos gênios (ou seria o caso da nova orientação preocupar-se ainda mais com a premissa de não educar gênios?) - ou se se trata apenas da preocupação excessiva antecipada para o caso de meus amados livros aparecerem rabiscados e coloridos, como se gênio nenhum nessas velhas almas e nesses escritos fosse mais louvável que o gênio hiperativo de uma criança com lápis de cor empunhado.

- É pra fazer os caminhos? - Ela me perguntou, séria.

- É! Mas apenas com os olhos e o pensamento.

Foi a resposta que eu tive ao alcance.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Brecht para baixinhos




Eu, sentado no sofá em frente a um Pedro sério e cheio de autoridade que me observa de uma cadeira giratória com ares de oficiosa.

Pietra, segurando um coelho de pelúcia (supostamente seu filho), faz menção a sair do quarto (supostamente a casa) para levar o "filho" à "escola".

Nisso, seu "marido" (Pedro) dirige-se a ela, sem desviar o olhar que me enfrenta, e dá seu aval: "Vai! Enquanto isso eu converso aqui com seu tio." - E me convoca à brincadeira em referência cruzada sem que se desfaça a diegese que nos reúne no recinto: - "Você é tio dela, tá?"

Pietra, que já havia se retirado, retorna, em vista da necessidade de direção que se faz evidente, e me orienta: "Finge que você é meu dindo, tá?"

Eu, porque não pudesse deixar a realidade de lado (e não por entrega absoluta ao personagem, diga-se de passagem), afirmo: "Mas eu sou seu dindo!"

E ela: "Então, finge que você é meu tio!" - Eu, ainda: "Mas eu sou seu tio!"

Como alternativa última e uma vez a realidade sendo demasiado bruta e não suficientemente promíscua para dar conta das aspirações e nuances de seu imaginário, define assim: "Finge, então, que você é meu irmão!" - E sai do quarto para onde deverá voltar uma vez deixado o coelho na escola.

˜Tomara que ela volte logo!" - Pedro exclama, talvez, na ocasião de um desconforto fictício do anfitrião que é deixado à função de "fazer sala".

Eu, já então sugerindo entregar-me à peça, mas sem abandonar o cinismo adulto que me molda o caráter, faço a sugestão: "Vamos falar de economia, então?"

"O que é economia?" - coloca-me, Pedro, a par de sua honesta ignorância sobre o assunto, sem reconhecer que este lhe deveria ser familiar na posição, que ora ocupa, de homem da casa.

Tento explicar-lhe: "Quando sua mãe vai comprar comida, ela precisa de dinheiro. Por isso, vai todos os dias trabalhar, pois, no final do mês, alguém dará a ela dinheiro em troca desse trabalho. E todos, precisando de dinheiro, precisam trabalhar - a não ser aqueles que dão o dinheiro, pois eles recebem o dinheiro a custa das pessoas que trabalham para eles. Bom, o conjunto de todo o dinheiro, o dos que trabalham, como a sua mãe, mas também o dinheiro daqueles que não trabalham, como aquele que paga a sua mãe pelo trabalho que ela faz, isso é a economia."

Ele me olha por alguns segundos e se coloca a disposição de aceitar a minha explicação, com uma pequena condição: "Mas a comida é de mentira, tá?"

"Por que?"- eu pergunto.

E ele: "Pra não sujar a casa, ué!"

sábado, 15 de junho de 2013

Meu caro colega, o senhor me deve vinte centavos!



Ligo a televisão e me deparo com a fala grotesca do governador. Depois dele, as imbecilidades incorrigíveis de um célebre cronista político são suficientes para me colocarem em estado de crítica insatisfação - fisiológica, inclusive.

Sinto-me enjoado. Parece-me difícil distinguir por entre as sensações que me agora causam desconforto, aquelas  essenciais que determinam meu mal estar diante das falas que emanam do aparelho de tv até meus ouvidos e olhos.

Minha primeira reação é culpar-me os sentidos e, então, desligo a tv. Não basta! Não me basta não ouvir mais. Saber  que outros milhões observam e absorvem aqueles mesmos depoimentos faz deixar percorrer, ainda, a sensação ruim que me nauseia desde a boca do estômago até a garganta. Percebo, assim, que o problema ali sou eu mesmo. Aquelas falas não se dirigem a mim.

E nem poderiam.

Os governantes falam, como aquele, aos milhões, nunca a um e a outro. Adomais, a posição que se pede ali, à frente da televisão, não é minha. Nesse momento, milhares de pessoas estão nas ruas, empenhando sua qualidade de um e outro a transfigurarem-se em milhares. É a despeito desses milhares que a fala do governador se projeta - contra eles.

Eis o problema que agora sou. Deveria eu estar também nas ruas. O mal estar que me assalta toma, entao, a forma precisa da culpa; a incongruência da posição que ora ocupo - esse lugar não me pertence; aqui, sou a audiência imprópria de um discurso que não se dirige à mim.

E como poderia?

Fala o governador que a massa é ignorante ou politicamente mal intencionada; que a massa é obtusa, intransigente e avessa a ordem que se institui com o Estado; a massa é caótica, imprecisa e perturbadora; contrária a ordem que é, em resumo, nosso único bem comum.

Os teria chamado anarquistas se, ao invés da massa, fossem uns e outros a manifestarem-se sem rítmo e sincronicidade, mas nem mesmo o governador pode negar que há harmonia e conjunto ali. Deve, então, sugerir que do conjunto sobressai a "intencionalidade má".

Não posso deixar de notar, que a fala do governador é contraditória. Enquanto afirma uma situação política particular, subrepticia, maquinada e senhora de si, fala ainda de bagunça, vandalismo, reiterando a natureza entrópica dessa investida.

Assim sendo, não posso reconhecer o universo sugerido pela fala do governador, porque a ordem a qual se refere ele é uma ordem inteiramente outra daquela que se instala no meio da multidão: essa sim, uma ordem urgente e esperançosa.

Estando a observar a massa de longe, eu mesmo diante da voz e das ideias do governador de um princípio ordenador absolutamente distinto, reconheço a ordem - a mais clara ordem! E se  há nela  uma contradição, deve ser, no entanto, uma contradição também outra. Ao invés de dizermos, então, que o "crime organizado" se atira ao ataque à completa desorganização, diremos que são indivíduos e grupos; que gritam ofensas e palavras de ordem; que se insurgem e amam incondicionalmente; que têm ideais e impulsos; que são sonhadores e se desesperam muito além da moda que vigorava em 73. E se alguma entropia aí se revela, reside ela no caos que, como no discurso do governador, atende sob o nome de ordem e se estabelece na razão sem razão de toda injustiça; toda extravagante e covarde agressão e toda espoliação da qual são vítimas os milhões, os milhares e, certamente, um e outro.

Não, essa ordem não é minha - e daí sobrevêm que a refeição que tenho no estômago também não queira ali ficar. Minha ordem deve ser uma outra - essa, avessa àquela para a qual se dirige o governador ou mesmo àquela dos meios e da estrutura  que faz resultar que a fala do governador tenha olhos e ouvidos atentos e em acordo.

Minha ordem está nas ruas e deriva de um e outro a milhares.

Mas seremos, em breve, milhões.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

O amor segundo P.h.

Vasculho, por entre as mensagens da minha caixa de e-mails, à procura de uma reposta dela para uma pergunta que eu nunca enderecei a ela. Nem bem cheguei a formular uma pergunta tal, mas um vazio intimidador dentro de mim, pede-me que espere pela resposta-alguma.

A solidão é um prazer que convém degustar às custas da inestesia. Enquanto procuro sentir, uma sensação qualquer que conforte a ideia de que o corpo é vivo e ininterrupto, que precisa sentir a todo momento, descubro que as sensações não se formam por dentro. A demanda é, por isso mesmo, o indicativo cabal de que algo me falta.

A mão estendida ao lado ressente-se da ausência da mão outra que sobre ela se largue e se prenda, como atendendo a um pedido jamais feito. Um corpo humano está arranjado de tal forma que não se ajusta na anatomia particular do indivíduo, sozinho, o encontro perfeito de uma mão com a outra senão quando quer expressar demasiado: bater palmas; oferecer reverência à divindade; estalar os dedos e insinuar algum tédio; não aquele encontro em que a mão com a outra se basta; que calaria o vazio; que vestiria a insegurança, toda insegurança; que aceitaria e escolheria com o menor movimento ou nenhum.

Mas a mão vazia, ao meu lado, se agita e com dedos inquietos procura por sobre o teclado palavras-consolo, palavras sujas de imagens sujas, que os olhos observam.

A mão é uma criança confusa que, na ausência do gesto e conforto, procura por todo o corpo; esgueira-se por dentro das calças e sente entumescer o falo sob o seu toque; se põe ao redor e aperta; larga e acaricia; esfrega; aperta.

A sensação é uma resposta simples a um estímulo dado. Não é como a resposta-aquela, a de uma pergunta não feita. E enquanto o vazio de dentro de mim geme em sincronia com o gesto e o pudor da mão que labuta sobre o pênis enrijecido, por sensações que se bastem; por um gemido a mais; por um fremir do prepúcio e em torno da glande; por um irradiar delicado a partir da pélvis e até o abdomen, a outra mão, sozinha, testemunha com apatia.

A mão direita, então, acelera. As sensações menores se integram e pedem ao corpo todo que sinta. Eu sinto, pois sou o corpo e quero gozar - Conheço o procedimento, não tenho que fingir pra mim mesmo.

Mas antes que uma ejaculação mal calculada suje a mobília, me viro para o lado e direciono meu pau à parede.

Um primeiro jato atinge com violência um mosquito que se punha parado sobre a tinta branca, e um segundo e terceiro o recobrem por inteiro, deixando-o grudado à parede.

Irônico que ao invés de fazer conceber uma vida, eu tenha dado cabo de uma outra, ainda que insignificante seja. Aproximo meu rosto daquele mosquito para olhá-lo de perto e vejo-o, sozinho.
Começo a rir eu mesmo, também sozinho: Quais eram as probabilidades?!

Pouco importa – solidão é circunstância e não poesia.

Não tem a menor graça.




domingo, 9 de junho de 2013

Sobre atrizes e atores ou Mente melhor quem fica calado.


Uma mulher e dois homens conversam na calçada de uma esquina, em frente a um bar, numa quarta-feira sem muito movimento naquele estabelecimento, sob a iluminação amarela e precária de um poste de luz, por volta das 2:30 da madrugada.

A mulher, um tanto elegante sob uma jaqueta de couro preto vestida por cima de uma camiseta de botões de um tecido fino, com o cachecol enrolado com pompa ao pescoço, gesticulava enquanto dizia aos seus dois interlocutores:

- Mamãe tinha aquele apartamento enorme no Jardim Botânico. Lembra, G.? – lançou olhar a um dos homens que estavam consigo e continuou – Eu dava aquelas festas incríveis quando ela viajava. Saudades daquele apartamento...

G., que aparentava ser apenas um pouco mais velho que a mulher, em cuja elegância e expressões faciais se poderia apoiar a sugetão de que tinha cerca de 40 anos de idade, confirmou com ela as lembranças do antigo apartamento ao se dirigir ao terceiro com alguma intimidade e legítima satisfação:

- O apartamento da mãe dela era um sonho. Quatro quartos, uma sala gigantesca e dois banheiros lindos. – bebeu um gole da taça de vinho que tinha na mão – Transei e cheirei muito naqueles banheiros – completou.

Ela, antes que ele recuperasse o fôlego depois da última fala, iniciou nova narrativa:

- Lembra daquela vez que alguém quebrou uma pia, fudendo ou sei lá o quê? E no dia seguinte mamãe chegou, entrou no banheiro e saiu sem dizer nada, com sangue nos olhos...

- Acho que foram Marcos e Ney – interrompeu G. com sincronia a fala dela, que prosseguiu – Foram eles mesmo? Não sei. Sei que mamãe chegou, entrou no banheiro pra tomar banho, saiu de cara fechada e não falou nada comigo durante umas 2 horas.

O terceiro perguntou com honesto interesse: - Que desculpa você deu a ela?

- Desculpa?! Minha mãe nunca foi burra, e se tem uma coisa que deixava ela fora de si era mentira mal contada. Por isso, quando uma coisa dessas acontecia, eu evitava mentir. Só fazia se tivesse um álibi muito razoável. – Logo assim que a fala da mulher terminou, num ritmo que poderia fazer aquilo parecer uma cena de filme, um taxi parou do outro lado da rua e buzinou seco duas vezes. Os três olharam para o carro e depois entre si, não reconhecendo, contudo, a razão daquele sinal.

O motorista do táxi abriu a porta do carro e se levantou esbaforido e entusiasmado, vindo em direção a mulher. Era um sujeito baixinho, careca, com bigode grisalho, aliás, da cor dos cabelos que ainda lhe restavam ao redor do cucuruto. Trajava calça jeans e um suéter listrado que lhe ia por dentro de um cinto marrom da cor dos sapatos. Parou-se em frente a mulher , esticando as mãos até seus ombros e segurando-os com firmeza, quando se pode ver um relógio prateado de ponteiro em seu punho. Exclamou, então: - V.?!

Ela, sem ainda reconhecer o cinquentão, mas se esforçando sem gratuidade alguma por fazê-lo, já que o senhor sabia seu nome e quando o disse alguma intimidade parece lher ter saltado com honesta simpatia através dos olhos, balançou a cabeça como se perguntasse sem jeito ao homem pelo seu nome.

- J.! J. Barcelos! Não lembra de mim?! – disse o senhor.

Alguma ideia na cabeça de V. parecia trabalhar em busca da memória perdida, mas antes que ela pudesse encontrar o homem se adiantou: - Estudamos juntos na CAO! Turma de 95, lembra?

- J.! – Devolveu ela o reconhecimento, aliviada. – Quanto tempo?! Nossa, deve fazer uns 10 anos que não te vejo.

- Quatorze e alguns meses - corrigiu ele, acrescentando, ainda, com um ar forçado de desleixo – mas quem tá contando, né? - e seguiu com a conversa – E você? Como tá? Ainda atuando?!

- Nada J. Parei de atuar há alguns anos. Faço, de vez em quando, uma ponta aqui e ali em trabalhos de amigos, mas só pela camaradagem. – Disse ela.

- Poxa, e tem feito o quê nesse tempo? – perguntou indiscritamente.

Ela: - Trabalho com produção.

- Teatro, cinema?! – seguindo com o inquérito.

- Teatro, eventos, festas... Todo tipo de produção. Mas e você, dirigindo táxi? – E nesse momento sentiu-se no ar um jogo de forças estranhas, onde as perguntas pareciam se estabelecer conforme disputa em que se deveriam , V. e o senhor, afirmar, numa projeção dos anos que se passaram desde seu último encontro, como bem sucedidos profissionais desde o ponto de vista crítico de cada um. Os dois homens ao lado de V., alheios ao diálogo que tomou lugar, limitavam-se a sorrir e balançar a cabeça conforme se exigia deles alguma presença de espírito.

- Continuo atuando. Tô fazendo um curta agora. Esse visual aqui é pro filme – e passou a mão sobre a cabeça e no rosto, sob o nariz, indicando a cabeça calva e o bigode. – Um curta do M. Karini, conhece ele? – e deu apenas meio segundo (o tempo para recuperar o ar perdido durante a fala ininterrupta) interrompendo uma negação iminente da parte dela, continuando a fala – O táxi é só um bico, mas é um laboratório incrível. Você conhece todo o tipo de gente, gente real, verdadeira. Eu acho que interpretação é isso. Você tem que beber nas ruas. Naturalismo é interpretar como vivem as pessoas comuns, a prostituta, o cafetão, o playboy, o advogado... – Nesse momento, G. e o terceiro se entreolharam. G. deu mais um gole em seu vinho e voltaram os dois novamente as vistas ao senhor, sem que nenhum julgamento mais estreito tomasse forma aparente. O homem continuou em seu monólogo, enquanto V. lhe endereçava um sorriso artificial e honesto ao mesmo tempo, pois não queria de fato sorrir, mas não tendo antipatia alguma por aquele senhor, pedia-se ali que sorrisse como sinal de acolhimento: - Outro dia, imagine você, eu tava passando ali por Ipanema, em frente aquele restaurante italiano. Sabe aquele?! Do mesmo dono daquele hotel no Leblon?! Enfim, advinha quem fez sinal pro meu táxi? Tony Ramos! Ele entrou, falou que tava indo pra Barra da Tijuca e eu ali, taxista, sem sair um momento do personagem. Falei pra ele “conheço o senhor de algum lugar, o senhor não trabalha na televisão?”, ele bufou e me respondeu meio impaciente “trabalho sim, sou ator”. Você acredita nisso? Realismo puro. Fui puxando conversa a viagem toda, assuntos banais, ele meio irritado durante todo o trajeto. Em nenhum momento imaginou que eu também fosse ator. Curioso né? Essas coincidências da vida...

G., a essa altura já dirigia atenção para um grupo de garotões que havia parado ao lado deles há alguns minutos, enquanto o terceiro pensava consigo: “Qual a coincidência? O Tony Ramos pegou um táxi. E aí?”. V. começava a sentir-se desconfortável com a narração e a performance do antigo colega ao ponto que o sorriso já não mais se sustentava, deixando no lugar apenas uma boca um tanto distorcida, porque ela também já não tivesse a medida do gesto que articulavam os lábios.

O senhor, sentindo o enfado que se armava, onde já não houvesse outro interlocutor interessado que não ele mesmo, olhou ao relógio e disse: - Bom, tenho que ir. Fechar o ponto do dia. Pago 120 reais na diária desse carro, acredita?

V., solidária a inconformidade de J., exclamou: - Nossa! – e em seguida pediu ao colega um cartão, fazendo referência ao fato de que volta e meia precisava de táxi. Ele abriu a carteira de couro marrom, em combinação com o cinto e o sapato, tirando dali um cartão que entregou a ela. Abraçou-a e se despediu com essas palavras: - Muito bom te ver. Temos que marcar alguma coisa algum dia. – Ela confirmou a convenção com polimento: - Vamos marcar sim!

O homem entrou no táxi, acenou com uma buzinada sutil e seguiu seu caminho.


V. retomou a atenção aos dois colegas e perguntou: - Sobre o que falávamos?! – Os dois pensaram um pouco e, em sincronia, fizeram menção a história do antigo apartamento da mãe de V. no Jardim Botânico, mas como o assunto já estivesse esgotado, virou-se para o terceiro e disse: - E você B.? Fala alguma coisa você. Você tá aí caladão, não falou quase nada a noite inteira.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Esse não é um texto sobre a questão do aborto



A questão sobre a legalização ou criminalização do aborto esconde uma disputa ideológica mais essencial que a questão em si. Mas tal disputa parece ter ficado de lado quando os reclamantes de ambos os lados levantam suas vozes sobre as particularidades dessa uma disputa ideológica, largando-se fanaticamente sobre a questão, encetando o direito a vida – considerada a partir da formação original do embrião ou da fecundação primeira – ou o direito do indivíduo – a mulher, no caso – de determinar o curso da sua vida particular (sexual, afetiva e, mesmo, fisiológica), e ignorando quase por completo que uma discussão mais ampla deve tomar lugar na esfera social.

Quando a mulher, entendida como pertencente a um grupo minoritário (no sentido dos direitos reivindicados a uma questão de gênero) evoca o direito sobre o seu corpo (ainda que seja um direito legítimo) ela permite que a discussão percorra um trajeto superfícial que não revela o caráter social mais amplo e necessário da questão. Quero dizer com isso que a criminalização do aborto projeta – nas bases ideológicas mais essenciais dessa disputa – a redefinição e perda de um direito que não é apenas da mulher, mas do indivíduo enquanto membro de uma sociedade acolhida por um estado.

A definição de que o embrião é já uma alma (e que assim pressupõe a existência da alma nos termos dos quais a filiação religiosa é pretendente) quer projetar sobre o estado a incumbência da proteção desse, limitando, assim, os direitos da mulher sobre o seu corpo e, em última instância, sobre a sua sexualidade. Tal assumpção sugere que o Estado ceda a uma posição ideológica que tem em vista as premissas de instituições religiosas particulares, transformando essa premissa – a primeira vista religiosa – em uma determinação política. Ou seja, conforme todos os cidadãos adquirem direitos que estão previstos nas cartilhas de determinada religião, ao mesmo tempo, eles se encarceram sob os deveres descritos também nestas cartilhas.

O direito do embrião de se desenvolver em um indivíduo ativo, no entanto, é uma pura abstração (como são, em todo caso, os direitos previstos e instituídos e a determinação social e jurídica desses direitos). A posição ideológica outrossim defendida sob a nomínia desse direito, por outro lado, aparece de forma mais concreta na atual situação política do país. Parece desnecessário dizer que tal posição ideológica tem como anteparo as religiões cristãs de uma forma geral, mas o que não aparece nessa bandeira é que a atual disputa (a disputa particular sobre legalização ou criminalização do aborto) se apresenta segundo a realidade em que um grupo particular de cristãos ganha terreno no cenário político e põe a frente essa (e outras disputas menores) que, apesar de visíveis e em pauta em tempos passados, não assumiam até então a dimensão política que ora temos em vista. Forçando, assim, uma investida pungente contra o Estado laico e angariando na oposição corrente um antagonismo que generaliza e se reveste da rivalidade contra a própria religião. O Estado laico, no entanto, não deve ser anti-religioso (um Estado ateu, por definição), mas um estado em que a religião não implica diretamente aos cidadãos como um todo uma determinação que deveria ser propriamente política.

Diante desse cenário, é impendente que as instituições religiosas segmentárias se manifestem em favor do próprio laicismo do Estado, sob o risco inconveniente de deixarem de existir: Um Estado religioso é, invariavelmente, um Estado que suporta apenas uma religão. A religião, em todo caso, é definida pelas suas instituições; e instituições distintas, como ocorre, fundamentam religiões distintas em cujos deuses e dógmas (ainda quando partilhem nomes e origens afins) se promovem direitos e deveres distintos. Ao mesmo tempo, parece-me importante que a disputa em razão da legalidade ou não do aborto deva sempre estar na visada desse contexto e não se transforme numa disputa alijada onde, talvez, uma maioria composta por grupos culturalmente influenciados pelo “repertório” cristão tomaria a posição religiosa em detrimento da posição política, sem perceber que, desse modo, eles mesmos estão sendo preteridos e submetidos na disputa política.

É preciso, assim, que os partidários da posição religiosa tenham nome, que suas instituições estejam visíveis e que a disputa que tem em destaque a questão do aborto seja vista como expondo de forma irreversível à vulnerabilidade o estado laico, impossibilitando a orientação a uma sociedade inclusiva a diversidade cultural, étnica e religiosa - e gênero.


Vivemos em uma sociedade sexista em que as revindicações sob bandeira de gênero são legítimas e devem ter lugar e evidência nas discussões políticas atuais e advindas. Mas essa guerra particular, parece-me muito maior e nenhuma bandeira deveria ser alçada que não a bandeira da justiça social, da participação política plural e inclusiva e dos deveres postos em vigilância em nome dos direitos diversos dos grupos, instituições e indivíduos. Do direito ao aborto legítimo e subvencionado pelo estado, do direito a educação e saúde, a livre circulação de ideias e informações, mas tambem o direito à prática religiosa. Sempre quando esses direitos se mostrarem contraditórios e conflitantes é preciso retornar as bases da disputa ideológica e se verificar se a razão da disputa é mesmo a noção imprecisa de justiça e humanidade (que deve abarcar indivíduos tão distintos) ou se é o caso da manipulação (intencional ou não) em favor de um grupo minoritário.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

À la carte (les lettres)


Palavra menos digna que a da língua o gosto
É aquela que me cerca como a vida crosta
Numa indecisa métrica entre vocativo e aposto
Sabe a camarão, caranguejo ou, quiçá, a ostra?

Foram essas palavras que se lançaram à mesa onde um senhor de fraque e uma jovem impecavelmente vestida encaravam um sumptuoso prato em que uma lagosta rubra e brilhante se dispunha ao centro de algumas verduras e legumes cenograficamente organizados. O homem e a jovem, atônitos, olharam-se quando, não sem algum despeito, o homem reclamou em voz alta a presença do maître:

- O senhor está vendo isso?! - Disse ao, então, presente e atento a sua inconformação.

- A lagosta não está ao seu gosto, senhor?

- Sabe a camarão, caranguejo ou quiçá a ostra? é isso que tem vosso estabelecimento a oferecer a mim, eu, homem de textura culta, do sabor eleito? É isto que chamais de erudição gastronômica e ofereceis a um partido, como eu, eivado em aristocracia e tecido na seda da autoridade e classe nobres?

- Desculpe-me, Senhor. Devolverei imediatamente o prato ao chef . Espero que o senhor possa perdoar nossa falha seleção.

Disse o maître, uma vez que não parecia haver falta evidente no preparo e composição visual, tal como uma pintura de corte houvesse sido projetada sobre a bandeja e posta a repousar sobre a mesa, inclinada a uma iluminação que fazia lembrar o barroco espanhol no aveludado vermelho das dobras do crustáceo como nos tecidos representados por um Murillo ou no detalhismo presente à volta, fazendo de cada elemento um personagem como faria o próprio Velasquez; também no aroma a obra pareceria digna ao mais sensível florista, em equilíbrio delicado que se apresentava entre o temperado ousado das ervas e o suave natural vegetante; do sabor, em todo caso, não poderia haver reclamação alguma, dado que o prato voltou à cozinha sem que nenhuma língua o houvesse tocado nem que dente algum houvesse imposto sobre a superfície do alimento sua força e seu movimento. Deveria, então, deduzir um funcionário esclarecido como aquele, que a matéria-prima não estava de acordo, pois iguaria como aquela, referência maior de refinamento e bom gosto, deveria assim criar menos com paixão que com virtuose, mais afeita aos preciosismos métricos que ao fulgor fonético das aliterações.

“Pobre chef” - pensou o maître no caminho de volta à cozinha. Pois àquele, cada pedido retornado era como um fracasso maior que a própria função a ele competida, como um pai a quem é dado testemunhar a inépcia do filho amado, sobre quem tanto se teve investido em orientação diligente e zelo e afeto.

Antes de chegar ao cozinheiro, a quem entregaria o prato e repreenderia indulgente por força da ocupação que o impendia, passou pela copa onde alguns funcionários se preparavam para uma refeição vulgar e sem prumo: pernas de frango e batatas que entre o alcance das mãos e as mordidas alternavam palavras em alturas irregulares que soavam como melodias contemporâneas - o atonalismo de um Schoenberg ou o ruído movimentado das ruas - mas em cujo conjunto seria possível entrever sintaxe mais definida e sentido mais vivo: “Carne-torta-faca-corta-sorte-volta-morte-luta-marta-minha-amada” ou “Singra-folha-caldo-sebo-sal-e-rolha-horta-pata-perto-calha-querida-minha-amália”.

Sentiu-se, o maître, enjoado com a sonoridade que exalava daquela mesa onde os brutos se alimentavam de tão ordinário conteúdo e apressou o passo para fazer-se distante da gente aquela. Chegou ao chef a quem estendeu o prato com a lagosta, apoiou-o no balcão a sua frente e esperou pelas considerações do mestre de cozinha.

- O que houve? - perguntou direcionando os olhos ao crustáceo como se a ele fizesse sua indagação. E tão logo deu-lhe os ouvidos. Repetindo as palavras mesmas empregadas há poucos minutos no salão, sobre a mesa, o poeta-lagosta fez se apresentar ao tutor e íntimo colega:

Esta é a página derradeira em que me inscrevo
Veis? Sou sobre o prato o que vossa postura reclama
A nota sem rima de uma tragédia em relevo
Esse túmulo úmido e liso que vossa fome lê “cama”

Mas se é isto o que sou que quereis conhecer
Desta carne iletrada da qual o sabor é saber
Entrego-vos estas sob os olhos sisudos do vosso desejo

Lerdes, pois, com os ouvidos aquilo que encanta
Com as papilas o livro que lhe desce à garganta
Sou aos dentes comida, mas há em toda boca um beijo

Tem nome o sabor e sabor esse nome?

Palavra menos digna que a da língua o gosto
É aquela que me cerca, como a vida, crosta
Numa indecisa métrica entre vocativo e aposto
Sabe a camarão, caranguejo ou quiçá a ostra?

Arregalou os olhos que se encheram de lágrimas em poucos segundos. As lágrimas eram, contudo, ambíguas. Chorou, a um tempo, emocionado e desesperançoso, sensível ao gênio e inconformado à demanda. Sabia daquela lagosta a honestidade que lhe escapava da carne pelas frestas da casca. Não foi a primeira vez e não seria a última ocorrência de um talento assim desperdiçado simplesmente porque o cânone classista pedia apego à norma técnica e a mesura à promíscua da muda tradição ataviada.

Lembrou-se, então, de um soufflé de amoras que certo dia serviu, de cujas palavras só restou a memória desse um cozinheiro frustrado, não com a arte sua e a da sua cria imediata, mas com o insípido dos juízos que vieram a ter à mesa com aquela sobremesa um pouco doce, mas, sobretudo, ousada e cheia de nuances, rejeitada pelos critérios insubstâncias do Conde de Maricá, que à altura, desviara o olhar da mesa, exigindo a retirada imediada do pospasto quando ouviu estas palavras: 

Tem coração a fruta que é
por ser apenas: como forma
de cuja cor não se vê a fé
que é somente fibra e norma?

Há redenção alguma em ovos
das claras batidas senão à martelo
cuspindo gastos gostos novos
rendido à tradição pequena o belo?

Pergunta! Eu te exijo
Porque é na dúvida
essa sobremesa inculta
que tem nome um regozijo

Desfruta, então, o mel ambíguo
doce, amargo, salino e acre
pois sem juizo, sabor tem lacre
que gosto tem, meu caro amigo?

Que gosto tem...?

Como naquela vez - quando tal genialidade indesejada houvera sido substituída por uma torta qualquer disposta a descrever meramente ingredientes, ainda que em versos Alexandrinos com cesura mediana - também agora o mestre se via submetido a função na qual ele não era senão um burro de cargas, um entregador de pizzas ou um vendedor de bíblias. Ele mesmo, mais um pedagogo que um artista, antes incumbido por dar nome e contexto a expressão de seus discípulos que de propriamente fornecer-lhes a mágica e o instinto, não se via como o criador resoluto, idêntico a si mesmo, artista e gênio, mas antes satisfazia-se  com a ideia de sua imprescindibilidade no processo de amadurecimento daquelas almas vagas que se expressavam na sua própria entrega a digestão de homens letrados e sensíveis. A rejeição de um prato absolutamente original como aquele era um duro golpe para aquele senhor, de amor próprio já muito escassamente acumulado.

Decidiu, então, que prepararia sua última refeição naquele estabelecimento, oferecendo-a em retorno à desaprovação daquele aristocrata e sua acompanhante. Pediu ao maître que anunciasse aos endereçados a solução de seu caso, convidando-os a esperar pela nova obra.

Alguns minutos depois, a bandeja seguiu coberta da cozinha à mesa onde foi posta com todo cuidado e delicadeza. Uma pausa categórica do servente antes de destampar o prato deu classe e drama também ao serviço e entrega, como os ornamentos acintosos de uma moldura talhada ainda quando as atenções devem priorizar seu interior. Inclinou-se, em seguida, sobre a mesa e deslocou ao alto a tampa da bandeja num gesto rígido e preciso.

Viu-se, então, uma pequena cebola em conserva cortada ao meio e antes que uma reação qualquer se sobrepusesse àquela apresentação, uma voz úmida, rouca e pouco volumosa se lançou da bandeja aos ouvidos presentes:

Comei com a boca
que estes ouvidos
enganam-vos.   



segunda-feira, 25 de março de 2013

Diálogos e laticínios

A mãe questiona o filho (mulher e homem adultos de cuja relação só é possível tomar conhecimento porque o narrador impaciente assim a declara): "Você vai beber esse leite? Tenho frio, preciso cobrir-me."

O filho, então, responde: "Não, obrigado. Pode guardar. Acabei de comer uma pizza."

sexta-feira, 8 de março de 2013

Perna Curta e o poder simbólico




Numa delegacia no centro do Rio de Janeiro, especializada em crimes de violência e agressão contra mulheres, entra, de vestido florido longo,uma bela jovem, dirige-se ao balcão de atendimento e anuncia que quer denunciar uma agressão. A atendente pede-lhe informações básicas, digita alguma coisa em seu computador conforme a mulher lhe presta satisfação dos dados requeridos e indica-lhe que deve esperar ali mesmo no hall de entrada pelo policial que irá tomar-lhe o depoimento.

A mulher, cabelos louros e longos, rosto delicado arranjado em expressão todavia hostil, certamente ainda remoendo as lembranças do acontecido que a fizera encaminhar-se àquela delegacia, recuou até o hall e sentou-se num banco instalado junto à parede. Esperou por cerca de 40 minutos (a demora, nesse caso, era também a celebração da ocupação do policial – e toda expectativa produzida naqueles 40 minutos deveria justificar assim a relevância do ofício que a venerável autoridade executaria, num misto de psicólogo, ombro amigo e homem de justiça, como nem o Rei Salomão ainda quando das suas mais inquestionáveis virtudes), quando se soube chamada para prestar seu depoimento num quadrante sem cobertura delimitado por paredes baixas no fim de um corredor atrás do balcão de atendimento.

O policial pediu à jovem mulher que se sentasse e sentisse-se “à vontade” (fora o termo exato usado por ele). Vendo-a acomodada na cadeira, sentou também ele e perguntou: “O que aconteceu?”

A mulher curvou a cabeça abaixo da linha dos olhos do homem a sua frente, colocou a mão sobre a testa como servisse de apoio a uma consciência repleta das frustrações e desmandos da vida sobre seu crânio e relatou ao policial com a voz um tanto chorosa: “Fui agredida pelo meu namorado!”

O homem entendeu logo a dimensão do problema, como não poderia deixar de ser, uma vez que se tratava ali mesmo de fórum apropriado àquele gênero de denúncia. Pediu, assim, que a mulher continuasse, detalhando a história e se fazendo entender pela narrativa para além da circunstância já anunciada.

A mulher levantou o rosto, colocou a mão esquerda cerrada sobre a boca enquanto pigarreava, adequando à voz um depoimento claro e lúcido como seria – e se iniciou sem a insegurança e  melancolia que antes sugeria a fala da jovem: “Nós voltávamos do aniversário de uma amiga minha, começamos a discutir no carro por uma coisa boba qualquer, que já nem me lembro, e quando entramos em casa ele se descontrolou e me bateu.”

Nesse meio tempo, o policial digitava no teclado como que acompanhando o depoimento da moça, enquanto fazia sua atenção intermitentemente variar entre a fala dela e as teclas do computador. Após concluída a narrativa, um tanto sintética, e ainda alguns segundos depois de uma digitação residual na qual o policial se empenhava (talvez corrigindo erros ou colocando acentos nas vogais), trouxe ele novamente os olhos fixos e atenciosos aos olhos dela e perguntou: “Bateu como?”

A mulher, sumária e resoluta como antes na história, respondeu-lhe: “Ele chutou minha canela.”

O policial, então, manteve-se inerte em expressão facial incrédula, pois como se não compreendesse a fala, ou melhor, como se julgasse haver engano qualquer naquela comunicação direta, julgou tratar-se de caso de polido silêncio antes de lançar, reticente, a pergunta mais uma vez: Bateu... como?

A mulher, dando ênfase à convicção reproduzida no tom de voz intensificado, devolveu-lhe: “Ele chutou minha canela!”

O policial, no entanto, deu mais uma vez razão à dúvida: “Você tem certeza?”

Devo confessar aqui, malgrado o constrangimento da vítima na situação em que se encontrava, que compreendo e me compadeço com a estupefação daquele senhor da lei diante da conclusão em que se encerrava o registro. A natureza da ofensa que leva uma mulher a denunciar criminalmente seu parceiro projeta-se muito além das repercussões físicas daquela conduta. O chute na canela, não há dúvida, trata-se de agressão intencionada e fisicamente plausível, mas em cuja conotação não se justifica ou não se deveria justificar o contexto relacionado a uma situação de denúncia como aquela, não porque seja de modo algum lícita ou porque os danos e riscos físicos não sejam assim relevantes e senão porque o caráter simbólico daquela ação não endereça a ocasião de uma ofensa tão grave. Repare que o chute na canela, não sendo episódio comum nas brigas conjugais e nem mesmo ação recorrente em duelos pela honra ou coisa parecida, é circunstância repetida e cabível, por exemplo, numa comédia infanto-juvenil. É possível recorrer à memória para lá encontrar tais imagens que não nos condicionam - como no caso da mulher agredida - ao ímpeto da indignação, mas ao riso e ao divertimento. Ou seja, a mecânica e a fisiologia implicadas no gesto determinam por definição um agressor e um agredido, mas ao insulto, pede-se que haja mais profundidade na ação e ousadia imoral mais inescusável. A canela, por outro lado, é do corpo apenas um membro acessório; uma extensão literal da perna que lhe serve o caminho e a sustentação simplesmente; é o local por excelência dos acidentes ordinários, dos impactos súbitos e imprevistos, dos ferimentos mais grosseiros e sem conotações particulares; é, por isso mesmo, o chute na canela a agressão característica das crianças, almas inocentes em cujo dolo não há ainda uma dimensão simbólica elaborada.

Concedida ao senhor, dono das perguntas eméritas, essa nota em defesa, segue-se à história que: o policial, ainda não satisfeito com o desdobramento particular daquele depoimento, questiona a jovem acerca de uma possível e suposta indisposição da memória dela, como nas palavras mesmas usadas por ele: “Não teria sido, por acaso, um empurrão violento escada abaixo, um tapa no rosto ou um soco no estômago?”

A mulher parecia não compreender a tentativa de seu interlocutor de dar rumo distinto à história que ela mesma vivera algumas horas antes. Mas tal procedimento parece justificar-se pelo estabelecido de que tais agressões, sendo muito mais recorrentes (e brutais, certamente) que o declarado chute na canela, parecem acomodar uma narrativa mais íntegra e adequada aos autos daquela instituição.

A mulher, ainda sem dar chance alguma à conveniência daquele desvio, perguntou em sequencia e com alguma severidade ao policial: “O senhor não ouviu o que eu disse?” - e concluiu em seguida: “Ele me deu um chute na canela!”

O policial, ainda que amador nos trâmites da psicanálise, mas cheio de espírito, fez-se entender melhor: “As vezes, nossa memória nos prega peças. Em especial, em situações traumáticas como esta. Parece que nossa consciência está sempre disposta a recobrir situações que nos são desgostosas com eufemismos e ilusões e fazemos com isso sublimar tais eventos em registros distorcidos ou enganosos do que aconteceu na realidade. A senhora pode, quem sabe, ter tomado um tapa no rosto por um chute na canela, não?”

A mulher, a essa altura já com uma expressão de deboche que não lhe sairia mais do rosto então e depois, levantou o vestido florido, deixando exposta a marca vermelha na canela em que se via as ranhuras de uma espécie de bico grosso de calçado, talvez, uma bota militar. Segurando entre as duas mãos com firmeza a perna na altura do joelho, direcionou ao policial e perguntou ironicamente: “O senhor vê?”.

Diante daquela evidência e como que para se redimir do cepticismo que o acompanhara durante todo o depoimento, o homem levantou imediatamente da cadeira, abriu a gaveta da mesa de onde tirou uma pistola e enfiou-a na parte de trás da calça, um tanto agitado, quando inquiriu a mulher pela última vez, dando como consolo uma resposta em ação: “Onde ele está nesse momento? Vamos até lá, agora, dar voz de prisão a esse covarde!”

A viatura se dirigiu ao local. Dois policiais entraram na casa e anunciaram ao acusado - que abriu a porta sem oferecer resistência - do que se tratava. O meliante acompanhou os policias na viatura até a delegacia e teria sido preso naquele mesmo dia, não fosse um único detalhe: tratava-se de um desenho animado: um enorme coelho de corpo esverdeado, duas orelhas compridas - uma ao alto e a outra dobrada ao meio, recaindo sobre a testa -, olhos que se movimentavam neuroticamente ao redor das órbitas ovais, e calçava botas pretas, imponentes, uma das quais, como evidência, instrumento reconhecido da agressão.

Diante daquela criatura, cujos jargões repetia em sentenças que não faziam sentido algum em contexto, o delegado se viu obrigado a renunciar à circunstância do encarceramento. Percebera a absoluta indisponibilidade das restrições do espaço, visto que o acusado, na condição de desenho animado, era capaz das mais inverossímeis peripécias físicas: poderia ele passar espremido pelas grades do cárcere ou, simplesmente, escorregar elegantemente pelos dutos de água ou ventilação; sem falar na ineficiência incondicional das armas de fogo com que estavam municiados aqueles defensores da justiça para com aquela criatura sem ossos, feita em plenitude de imagem e movimento.

Desse modo, na razão de encaminhar o caso para jurisdição apropriada, recorreu o delegado imediatamente ao ministério da cultura, cuja ação efetiva foi sucinta e definitiva para tirar de circulação elemento tão nocivo e indiscriminado perante à vida civil e a ordem do estado. Declararam, pois, ao convicto réu em questão a única pena cabível: a censura.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Gentileza gera gentileza, só que não


Entrei no ônibus com uma sacola na mão. Procurava pelo dinheiro na carteira aberta, um pouco confuso, a considerar que o veículo em movimento não me ajudava o equílíbrio e nem tão pouco a pressão que me fazia, com a atenção intermitente voltada a mim, o motorista, que deveria recolher o dinheiro e dirigir ao um mesmo tempo, enquanto um senhor num banco estrategicamente (ainda que a estratégia permaneça a mim desconhecida) isolado ao lado da roleta murmurava alguma coisa em minha direção. Entre os murmúrios distingui a sentença: “Passa a roleta, procura o dinheiro e depois volta pra pagar.”

Desconsiderei, no entanto, a sugestão. Não apenas porque julgasse desnecessário – e uma vez que eu passasse a roleta, teria que esticar o braço até o último centímetro para dar o dinheiro ao motorista, que deveria retorcer o pescoço e recolher a passagem com apenas uma mão no volante e o carro, provavelmente, em movimento – mas também porque a posição que me ocupava na procura do dinheiro, pedia-me que não desse atenção ao senhor atrás de mim.

Ele balbuciou mais alguma coisa; talvez tenha me oferecido ajuda, mas não tive certeza se oferecia e nem de que maneira me seria a ajuda dele benéfica.

Ao contar meus trocados, reparei que faltavam vinte centavos e tive, então, que puxar uma nota de vinte reais, para a qual o motorista não haveria de ter troco, uma vez que durante a madrugada, as empresas mandam seus funcionários ao trabalho como os mandasse a alguma expedição perigosíssima, não cabendo arriscar dinheiro algum no trajeto. De fato, a nota fora um problema que o funcionário tratou de rechaçar em um acenar negativo com a cabeça. Eu ponderei, assim, que, dos trocados que eu tinha a mão, vinte centavos faltavam para completar o valor da passagem. Ele estendeu a mão e me pediu o dinheiro. Entreguei-o com a sensação incômoda de que o motorista me fazia um favor desnecessário ao me poupar vinte centavos, mas também por conta do senhor atrás de mim que a essa altura já havia inserido inadvertidamente dois ou três comentários ao movimento. Entre eles, sobretudo, pensei ter ouvido algo como: “Você precisa de alguma coisa?”

Quando atravessei a roleta, pus-me de frente a ele, que me sorriu com ironia e me disse: “De nada!”.

Devolvi-lhe o sorriso apenas por dúvida e me coloquei a refletir sobre o comentário. O procedimento, no entanto, era claro. Oferecendo o jargão corrente em resposta a um agradecimento em questão sem, contudo, haver o agradecimento tomado forma, o senhor colocava em evidência o mérito de uma gentileza jamais reconhecida, e com alguma ironia, dizia-me mal agradecido de modo a não deixar dúvidas sobre a sua conduta presumidamente generosa.

Eu teria deixado passar se o desconforto por ficar devendo vinte centavos ao motorista não me tivesse roubado a tolerância que era ali necessária. Já havia passado a roleta e me projetava pelo corredor do ônibus quando resolvi retornar e lhe fiz a pergunta: “O que o senhor disse?” Ele ergueu a cabeça e , cheio de orgulho, repetiu que havia dito “de nada” em razão do agradecimento que eu deveria tê-lo oferecido por conta da gentileza descrita quando do seu envolvimento com a minha situação. Ele, de fato, havia-me perguntado se eu precisava de alguma coisa e nesse instante tive certeza. Eu, todavia, não precisava de nada, ou ainda que precisasse não teria recorrido a um estranho no ônibus. Aliás, os vinte centavos que ficaram por conta do motorista não me deveriam ser, absolutamente, necessários, já que à ocasião eu trazia comigo uma nota de vinte reais, dinheiro suficiente para garantir minha entrada no ônibus. No entanto, não pude negar que alguma gentileza se havia postulado no concernimento do senhor para com um que lhe era inteiramente estranho. Gentileza essa que se poderia retribuir com a gentileza proporcional de um “muito obrigado”. Fiquei, nesse momento, confuso e após ouvir o senhor descrever a ocasião em que me havia feito uma gentileza, senti-me compelido a agradecê-lo e o fiz, mas não sem um sorriso artificiosamente empunhado, como quem não fizesse senão atender a uma formalidade.

Veja lá! Inegável que o senhor me tenha gentilmente oferecido ajuda. Mas é incontestável também que sua ajuda não se tenha feito absolutamente necessária. Pareceu-me, assim, pouco justo que eu lhe fosse obrigado a agradecer quando de mais a mais o senhor perdera todo direito a um agradecimento ao exigir-me tão cinicamente um. Pois se foi a gentileza de por-se a disposição que o fizera digno de algum mérito, fora, por outro lado, a grosseria equivalente em contrário ao requerer-me em situação como aquela um inaudito “muito obrigado”. Pouco importa, e assim como eu havia sido forçado a aceitar a duvidosa gentileza dos vinte centavos postos em desconto pelo motorista do ônibus, fui também compelido a entregar ao senhor ocioso um “obrigado” que deixou de fazer sentido algum quando da sua imediata exigência.

Sentei-me num banco na parte de trás do ônibus, duplamente frustrado. Alguns minutos depois, o veículo passava por debaixo dos viadutos da rodoviária, onde se lia aquelas celebradas frases do poeta Gentileza, dentre elas, a famosa equação do velho também chamado profeta: “Gentileza gera gentileza”.

Pensei mesmo comigo: a economia dos gestos amáveis não é assim tão resumida e requer da justiça um desdobramento a altura para os casos em que não vingar a tautologia. Pois pode ser que o julgamento equivocado de apenas um dos lados determine não haver proporção alguma que justifique a vigência dessa espécie de lei de Talião às avessas.  

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Breve conclusão acerca do conhecimento e de como se põe a conhecê-lo




O mundo é bem maior que os olhos. Como teima, então, o homem em querer todo vê-lo?

Explico: É que a visão não está restrita a imagem; não está na luz nem no objeto que toma forma sob a claridade. A visão se abre, justamente, quando o mundo se põe ao alcance. O resto é pequeno; visada; vulto; paisagem; relance.

Visão é ver o mundo.

Olhos, até os cegos os têm.