segunda-feira, 16 de julho de 2012

Mal Secreto


Na mesa vazia, uma carta se apoiava silenciosa. Pois nem a mesa vazia, vazia estava, nem a carta se via, já que o envelope, fechado, a fazia adormecer. À volta, uma sala sem rosto. Um espaço não demarcado, escuro ou semi-escuro, já que vultos transparentes circunscreviam o ambiente ainda por ser descrito. De fato, não apareciam, mas se deixavam mostrar, ainda, nos limites, nas bordas da imagem que nem forma tinha; imagem sem remetente, como a própria carta ali dentro de um envelope quente.

É de se supor que o texto fazia menção a alguém, se dirigia a um outro e, muito provavelmente, guardava consigo as frustrações, desejos, idéias, os vícios, perturbações, cacofonias, inclinações, gestos e ensejos, alegorias, ignorância e domínio de algum dispositivo autômato que fazia de seu senhorio também um autor. Mas o texto - o texto mesmo - palavra e palavra conforme o que se lia; se leu ou lerá, não estava à vista. E alguém, por certo, por isso se pôs também aliviado. Porque também curiosidade e desprezo, zelo e audácia, preocupação, perspicácia e contexto, eram em nomes as sombras, traços quase visíveis dos vultos que ao redor da mesa - e da carta – circulavam no espaço de dentro da sala, ainda que fora das margens. Já que a topologia do oculto é esse virar ao avesso do plano; olhar de um lado e do outro sem ver a dobra, sem ver o verso, sem frente nem costas nem lado nem todo – apenas o intermitente e pulsante indeterminado.
    
Mas sob um olhar atento, mais fundo, ver-se-ia que a mesa tinha do metal a textura, que a carta dentro do envelope, cuja superfície brilhante acusava da substância o seu plástico, era de alguma matéria orgânica, ou quase orgânica, arrancada a um ser outrora vivente e a tinta vermelha do texto (pois vermelha devia, a tinta, ser) seria urucum ou cádmio, ou ainda algum óxido, ou extrato de algum vegetal amargo, ou, quem sabe, sangue de algum animal ainda não conhecido, produzido em laboratório ou nascido do cruzamento impróprio de duas espécies inimigas e incorrigivelmente bélicas. Sob essa escrupulosa atenção, poder-se-ia perceber que o negro do chão não era apenas da luz a ausência, mas de algum óleo negro ou carvão, que se tivessem pés esses vultos deixariam marcas e acusariam a presença indevida ou inoportuna que a carta velada lhes recusava; que se tivessem peso esses vultos afundariam até os joelhos e alardeariam suas pretensões escusas em gritos de socorro; e nesse instante o olhar à distância desconfiaria da realidade da mesa flutuando sobre a superfície negra, enquanto o envelope, por um instante, pareceria não estar mais ali. Porque não se pode olhar em detalhe ao mesmo tempo o corvo no alto e o bisão agonizando; não se pode ver em um único quadro o Brutus e o imperador apunhalado; há que se recorrer então a outros termos; imagens outras e outras vozes, outros nomes; já que a realidade não é atributo de um ente e nem uma virtude fantasmagórica do ar que cerca a matéria. Realidade é contexto, e apenas por sugestão de uma leitura não feita poderiam existir ao mesmo tempo a carta e tais vultos, já que a cola que lacrava aquele envelope era - e pouca dúvida parece restar sobre isso – a síntese e o suor de uma mentalidade vil; a força descomunal, lâmina e as serras de uma arma branca sem cor; pois era o lacre a própria medida do texto que se fazia ameaça e nem os vultos saberiam a distância entre eles e o objeto que lhes dirigia diligente atenção, porque esses vultos não tinham olhos e nem percepção alguma do espaço.

Quando alguns séculos mais tarde, uma palavra lançou renovado interesse pela existência passada e confusa de um texto que seguiu intocado por olhos humanos durante todo tempo em que se deitou silencioso e a espreita sob a fina parede de um envelope branco, historiadores argutos declararam haver decifrado o enigma e repetiram adiante conforme as leis das instituições que arcavam com os custos de suas pesquisas:

“Desejo todo mal do mundo a vocês.”

Mas permaneceu, ainda, não revelado quem houve assim desejado e a quem, por direito, o desejo se dirigia. Pois a ciência desses homens não atende ao interesse de outros homens senão ao seu próprio interesse. Do mesmo modo como, provavelmente a carta, se filiava também a um interesse marcadamente particular.
     

sábado, 7 de julho de 2012

Dinheiro é nome próprio ou O nascimento da tragédia


Numa rua antiga no atual centro do Rio de Janeiro, a iluminação insuficiente, ainda que elegante, pairava sobre dois homens a conversar em tom amigável. O primeiro, mostrando ao seu interlocutor uma arma, orientava este sobre os dispositivos mecânicos através dos quais a arma dispara, desde o percutir do “cão” sobre a parte de trás do cartucho, fazendo arremessar um projétil em alta velocidade capaz de perfurar  com alguma facilidade o corpo de um homem, até às implicações do manejo e os riscos, para o próprio manuseador, por desconhecimento técnico e utilização imprópria do objeto. Disse ele:

- Como podes ver, tal engenho é justificativa razoável ao menos, embora talvez não tão nobre, para que façamos dar seguimento ao roteiro no qual você me entrega o dinheiro o qual dispõe na carteira, e eu me encaminho na direção contrária a sua, logo após a transação concluída.

O segundo homem, que ouviu com interesse ímpar as descrições técnicas e a lógica irrefutável da conclusão daquele exímio “negociante”, interpelou-o com ares de leigo, mas antes sem deixar de mostrar algum respeito pelo domínio e conhecimento que o outro possuía sobre o seu artifício:

- Mas isso é mesmo capaz de perfurar o corpo do um homem? Digamos que o homem tenha tônus muscular acima da média, ainda assim seria essa arma capaz de perfurá-lo desta distância em que nos encontramos um do outro? E, afinal, tendo o corpo perfurado por um projétil tal, como o que você menciona, poderia esse homem morrer em decorrência disto?

Neste momento, o senhor com a arma olhou para o chão, estabeleceu o rosto em uma determinação fisionômica que o fazia parecer pensativo e, calmamente, apresentou suas considerações sobre a pergunta do outro:

- Bom, não tenho dúvidas de que, a essa distância, mesmo o homem cuja densidade muscular seja bastante acima da média, teria seu corpo perfurado por um projétil como o que se encontra nesse momento engatilhado neste pistola. Embora, atingindo em seu trajeto, quem sabe, um osso, poderia ser o caso do projétil não atravessar todo o corpo no caminho em que se conduzia. Se tal perfuração, de todo modo, seria causa mortis nos termos que tomo da tua questão, isso me parece um tanto mais difícil de prever. De fato, tal conseqüência dependerá de inúmeros fatores que não posso calcular com precisão antes do fato decorrido, mas creio que numa escala de possibilidades, tendo em vista as condições que se nos apresentam neste momento, considerando a figura do senhor mesmo como do dono do corpo a ser perfurado, acredito ser muito provável uma morte decorrente deste possível disparo.

Apenas depois da resposta e após considerar os possíveis danos em detrimento da quantia que trazia acumulada na carteira, o homem dirigiu ao bolso as mãos e de lá puxou, também calmamente, a carteira em couro marrom da qual retirou a quantia de cento e cinqüenta e oito reais, sendo entregue ao senhor com a arma em três notas de cinqüenta, uma de cinco, uma de dois, e uma pequena e reluzente moeda de um real. O homem tomou o dinheiro na mão que permanecia vazia, a mesma mão que o artista usou para indicar as partes e os movimentos das peças da arma naquela sua descrição feita sobre os mecanismos desta, contou com aqueles olhos interessados e matemáticos de quem tem em mente as necessidades e desejos que lhe regulam o consumo, e concluiu não ser necessária a moeda que lhe havia sido entregue pelo agora pobre camarada, que apesar da pobreza agora evidente no esvaziamento sumário de sua momentânea fortuna, trazia ainda sobre a cabeça uma cartola, mantendo ares de aristocrata em concordância com o fraque que vestia e a gravata borboleta que se enrolava em seu pescoço.

Ao ver o diplomata afastar-se com o dinheiro que, alguns minutos antes, guardava sob sua tutela, concluiu em voz alta, projetando ao vento e ao espaço desabitado a sua volta as palavras que seguem:

- Se é mesmo verdade o que me dissera aquele astucioso cavalheiro, e dispositivo tal como o que trazia em mãos é mesmo capaz de perfurar o corpo de um homem, situando-o numa escala de possibilidades em que a morte é uma conseqüência provável, deverei eu mesmo utilizar as posses de que ainda disponho, em casa o no banco, em aquisição de modelos como aquele. Dispondo ainda de homens instruídos no uso e funcionamento da ferramenta, que receberão justo valor pelo cumprimento da atividade que seguirá, posso recuperar o dinheiro investido nas armas, além desses cento e cinqüenta e sete reais que acabo de pagar ao senhor pela lição e pela idéia.

O inspirado cavalheiro, então, levantou a cartola com uma das mãos enquanto alisava o cabelo com os dedos da outra, e tornou a posicionar o chapéu sobre os lisos fios daquela iluminada cabeça.

Naquele mesmo dia, um pouco mais tarde na noite, o homem pensou e repensou, desenhou digramas e esquemas, elaborou fórmulas, calculou todo o processo, definiu e tomou nota:

- Chamarei, a esta atividade, comércio!