domingo, 10 de junho de 2012

O observador submerso


A perede de vidro refletia meus dois grandes olhos redondos, sempre abertos, e meu corpo vermelho, escamoso e alongado. Quase não podia ver o outro lado, embora reconhecesse que alguma coisa, monstruosa talvez, se erguia por trás daquele vidro transparente, minha imaginação não era suficientemente complexa para especular muito além das formas repetidas que eu conhecia dentro daquele aquário: o cascalho colorido, o baú borbulhante ou a pequena caverna sob a qual meu caro amigo Uéslei se encostava quase todas as noites, se misturando a paisagem como se ele mesmo fosse um acessório de decoração.

Atrás de mim, Jeferson e Euclides, respectivamente um acará e um paulistinha, discutiam sobre uma questão que lhes parecia essencial. A ração, que aparecia todos os dias – as vezes duas vezes no mesmo dia – na superfície da água, se esparramava ali sem alguma regra ou dirigida a alguma ordem estabelecida. Lacerda, um poderoso bagre de corpo prateado, era o primeiro a chegar e ninguém se atrevia a incomodá-lo em sua refeição. Estabelecida que estava uma certa autoridade baseada numa simples medida de força e presença. Também assim era quando um companheiro morria, como no caso do falecimento de Tânia. Ao perceber que ela não ia bem, Moisés, Waltinho e Manduca, três mato-grossos atrevidos que andavam sempre em grupo (Até se anunciavam pela alcunha de The magicians de modo a angariar alguma publicidade em favor de sua suspeita agremiação), iniciaram pequenas investidas nas quais abocanhavam aqui e ali uma lasca ou uma escama de Tânia. Ela, por fim, faleceu e seu corpo logo se recostou no cascalho no fundo do aquário. Logo chegaram os outros todos para ver e tirar um pedaço. Uma grande festa e com muito entusiasmo, todos nós nos servíamos até a chegada de Lacerda. Ele não precisou de uma palavra: seu corpo simplesmente se estabeleceu flutuando sobre o cadáver de Tânia. Se movimentava freneticamente afastando todos os peixes menores em um perímetro em que se conservava com clara autoridade um ambiente tenso e silencioso no qual Lacerda faria uma refeição farta e egoísta também, devo dizer.

Euclides, um tanto indignado com a forma como autoridade se estabelecia, incompreendendo a apatia e resignação dos outros viventes daquele universo, perguntava a Jeferson o que ele pensava da justiça e se essa idéia alguma vez lhe passou pela cabeça em um outro esquema, balizado antes pela simetria das causas diante das partes e da proporcionalidade estabelecida dentro das virtudes e necessidades de cada indíviduo, não sendo medida apenas por fator tão tacanho e simplista como aquele, de mero tamanho e força física, em que se sustentavam ali as relações de uma primitiva economia alimentar. Jeferson, por outro lado, indicava acreditar muito nobre a idéia de justiça sobre a qual acabara de ouvir seu eloqüente amigo dissertar, mas ponderava um egoísmo primordial que parecia sustentar todo e cada peixe naquele viveiro, cujas bocas mastigavam alheias às fomes particulares de seus coetâneos, cujos corpos navegavam quase sempre a parte e em uma disposição que obedecia apenas as suas próprias vontades, salvaguardando exceções como os neons: peixes que pareciam constituir um corpo coletivo onde raras vezes se viu a marca de um comportamento individual. Esses, aliás, eram muitas vezes tidos mais como alimento (astuto conquanto disponível aos maiores e mais velozes) que como criaturas capazes, pensantes e merecedoras de algum respeito.  Por fim, Jerferson questionou seu caro colega Euclides, se ele mesmo, fosse como Larceda corpulento e intimidador, não se faria dos privilégios a revelia daquele ideal de justiça que acabara de defender. Antes que Euclides pudesse dar uma resposta, Manduca se intrometeu na conversa, seguido por Waltinho e Moisés, perguntando a respeito da discussão em pauta e quase imediatamente lançando seus pontos de vista, atropelando-se uns aos outros em falas que se dificilmente distinguiam.  Apesar disso, pude perceber como cada um trazia à discussão um senso de justiça particular, e a confusão que se estabelecia sonora, conforme gritava um e outro para sobressair sua voz a de seu interlocutor, parecia uma metáfora da precipitação ideológica que se desprendia da variedade daquelas personalidades e convicções.  

Naquele momento, eu recordei com saudosismo o tempo em que eu era apenas o caroço de um abacate, quando o silêncio que me cercava era também a unidade e a perfeição de uma idéia chamada justiça, indivisível e inquebrantável, que eu compartilhava apenas com o espaço úmido e cremoso a minha volta.