domingo, 2 de dezembro de 2012

Bonum Mercator nihil donat


O comércio é um jogo curioso.

A introdução poderia soar vaga não fosse dada à razão de mencionar certo procedimento em que um comerciante oferece, “gratuitamente”, na compra de um produto qualquer, um produto outro que, a principio, não denota nenhuma relação necessária com o produto a que virá, no trato em questão, vinculado. Chama-o “brinde” e tenta fazer sugerir que se trata de um negócio que se justifica na simples oportunidade dada, porque seja o comerciante um bom samaritano, louco, ou homem de pouca a nenhuma inteligência, a título de vantagem ao comprador que, não fosse por isso, compraria ainda assim, porque o produto em questão é bom o bastante e o preço absolutamente razoável. Diz-se que o bom vendedor é capaz de vender gelo a um esquimó. Mas se fosse o caso destes ditos estenderem-se com algum detalhamento, poderia-se também incluir que o esquimó levaria, ainda, na transação, um espelho de bolso ou uma escova-de-dentes.

Em um grande Shopping Center na zona sul do Rio de Janeiro, um conjunto de lojas associadas – que compreendia quase a totalidade das lojas do edifício – oferecia a todo comprador de seus produtos, cupons a partir dos quais o comprador seria convidado a concorrer a um carro novo: respeitando que a quantidade de bilhetes que o candidato ao carro disporia na urna do sorteio seria proporcional ao dinheiro por ele gasto nestas lojas.

O carro encontrava-se apoiado sobre um pequeno palco, na calçada bem em frente ao Shopping, logo ao lado da urna, que se situava atrás de um pequeno balcão de onde um funcionário, estabelecido pelos comerciantes vinculados à promoção, anunciaria o ganhador imediatamente após o sorteio do bilhete. Um amontoado de pessoas se espremia na calçada a espera. Ao todo, duzentas pessoas se dispunham como espectadores do evento que escolheria um ganhador dentre os milhares, talvez milhões, de cupons que, analogamente aos ali presentes, se espremiam na urna.

A ansiedade fazia com que as conversas que tinham lugar entre aquelas pessoas parecessem murmúrios. Isso porque nenhuma conversa deveria tomar suficiente atenção ao ponto de fazê-los desviar-se do sorteio e do anúncio do sorteado. Como se não bastassem os cupons alojados ali; como se o sorteado houvesse mesmo que personificar aquela escolha, estando ágil e disposto no momento do sorteio para que seu grito de entusiasmo fizesse condecorar uma escolha assim batizada pelo mérito – pouco criterioso, contudo – da expectativa. Desse modo, conversas se iniciavam sem muita convicção, em tom de voz ameno e findavam logo que alguma movimentação se fizesse aparente no palco a frente. 

A mulher, que retiraria o bilhete e anunciaria o vitorioso, se mexeu a frente do microfone disposto no balcão e fez menção a dizer algo. Embora o silêncio não houvesse irrompido absoluto e instantaneamente, foi conquistado em poucos segundos, ao custo de algumas reprimendas e sutis indelicadezas dedicadas uns aos outros pelos próprios ouvintes daquela sessão. Anunciou, então, que giraria a urna - cuja forma aparente já antecipava a mecânica de um dispositivo que a faria girar, certificando aos presentes que a escolha não seria determinada por possíveis “lugares privilegiados” onde a presença do cupom indicaria maiores probabilidades de que seria esse mesmo cupom sorteado: isso porque se havia ali premissa alguma para sorte era essa a quantidade de cupons por indívíduo e, portanto, o dinheiro gasto nas lojas e não a medida do manejo e a sagacidade do candidato no instante de atirar na urna o cupom – e escolheria o bilhete inadvertidamente, sem preparação ou parcialidade algumas, apenas se dispondo a cumprir as recomendações a ela dadas pelos organizadores do evento.

Girou, assim, a urna durante dois minutos e meio. Tempo necessário para a distribuição aleatória e casual dos bilhetes, mas também potencialização eficiente das expectativas, como fizesse-se rufar tambores a indicar que o resultado em espera era digno de toda reverência e atenção. Enfiou a mão na urna e de lá arrancou o bilhete - que antes não era senão um bilhete - e posicionou-o à frente dos olhos.

A pequena multidão fez dilatarem seus ouvidos, desfizeram-se de todos os pensamentos impróprios dedicando atenção que provavelmente não dedicaram antes nem mesmo a seus filhos, suas esposas e maridos, seus pais, colegas de trabalho ou professores, mas antes que a mulher anunciasse aquele nome, interrompeu-a o resultado de um evento outro que, desenrolando-se paralelamente ao sorteio, resultou num automóvel em alta velocidade invadindo a calçada e colidindo brutalmente com o carro novo a espera, objeto do sorteio em andamento.

Responsável pelo acidente, saiu do carro uma senhora ainda atordoada com a batida, mas aparentemente saudável, e dispensou sobre a cena um olhar de espanto. Os outros ali presentes haviam dispensado o mesmo olhar de espanto alguns segundos antes: Agora, começavam a entumescer suas expressões faciais, preparando-se para dedicar hostilidade mais veemente a inoportuna recém chegada quando a anunciante do sorteio, num misto de presença de espíríto e omissão de responsabilidade, declarou: “Senhor Marcos Heleno dos Santos!”

Imediatamente, diante do povo que naquele segundo retomava atenção sobre ela, identificou um rapaz que, ainda sem entender exatamente o que se passava, insinuou tratar-se ele mesmo de Marcos Heleno dos Santos. Logo, ela desceu do palco, esticou a mão com a chave do carro e entregou-a ao ganhador dizendo-lhe, antes de partir sem delongas em retirada: “O carro é seu. Parabéns!”.

Após o tramite concluído as expressões hostis do público deram lugar a novas, que no geral variavam entre a frustração e o alívio. Não era o caso particular daquele rapaz que, se segundos antes saltou-lhe um convidativo entusiasmo e agradável surpresa com o sorteio que lhe havia sido favorável, restabelecida a cena em que a velha e os carros amassados tomavam parte, seu humor, então, era o do homem irritado e desgostoso porque tinha que resolver o problema que acabara de chegar-lhe as mãos junto com a chave de seu novo carro.

Sem perder muito tempo, foi diretamente ter com a senhora, quando perguntou-lhe secamente: “A senhora tem seguro?”

A pergunta era honesta, já que cumpre ao proprietário zelar pelo bem de que dispõe, mais ainda quando se trata de material valioso como aquele. A resposta nem tanto, conquanto se lançara levianamente na forma pouco esclarecida de uma nova pergunta: “O senhor tem?”   

terça-feira, 25 de setembro de 2012

A umidade relativa da água



Chegou na minha casa às 23:37. Sei exatamente a hora porque olhei no relógio - sabia que mais cedo ou mais tarde acabaria escrevendo sobre isso e me apeguei aos detalhes desde a espera até a hora que ela partiu. Abri a porta e ela entrou. Sentou-se no sofá, cruzando as pernas que saíam de dentro do vestido minúsculo e esboçou um início de conversa: - Bela casa você tem.

- É alugada. – tive que dizer para que ela não pensasse enganosamente da minha situação financeira.

- Ainda assim é bonita. – ela concluiu.

Eu ofereci vinho, cerveja ou água, ela rejeitou, sumariamente, se levantou do sofá, colocou as duas mãos na minha cintura e começou com as carícias. Primeiro subindo pelo abdômen, por dentro da camisa, por todo torso até o peitoral, depois descendo, cravando as mãos por dentro das minhas calças e apertando minhas nádegas com força.



Minha timidez me deixou em atraso e eu demorei uns quantos 5 minutos para tomar o controle da coisa. Foi quando a virei de costas com brutalidade, encostei-a contra a parede da sala, bem ao lado de uma reprodução impressa de um quadro de Rothko, puxei a calcinha por baixo do vestido vermelho e penetrei nela sem esperar que ela estivesse pronta. Como não estivesse suficientemente molhada naquele momento sentimos, eu e ela, o vigor áspero e a brutalidade insensível da minha ofensiva. Mas ela logo se umedeceu e aquilo ficou pra trás. Eu continuei por trás dela, com força, num movimento em que fazia me demorar dentro dela, forçando até onde fosse possível a entrada.

Eu mantinha os dentes cerrados: se algum observador oculto me descrevesse espumando pela boca, eu não duvidaria. Ela gemia alto demais e eu cansei daquilo. Conduzi o rosto dela pelo cabelo com violência até embaixo, onde pressionaria sua cabeça contra o meu pau, fazendo da boca um orifício à disposição ininterruptamente. Depois de alguns segundos ela ficava sem ar, pressionava as mãos contra o meu corpo oferecendo resistência contra as minhas investidas, recuperava o fôlego como se lutasse contra um intempestivo afogador, e se largava novamente ao movimento.

Quis chamá-la pelos mais ofensivos nomes que me vieram a cabeça naquele momento, mas permaneci calado, com a mandíbula contraída. Levantei-a, ainda pelo cabelo, apertei firme sua cintura, apoiando-a sobre um móvel ao lado do sofá e tornei a penetrá-la. Sustentei o olhar diante do olhar dela, que arrefeceu e se desmanchou em submissão sem que ela desviasse de mim os olhos, enquanto eu mantinha o movimento da pélvis, que ela sentia e declarava com um gemido suave a cada estocada.

Ao me aproximar do gozo, puxei com força seu cabelo, inclinando a cabeça para trás, e cuspi sobre a sua boca. Ela arregalou os olhos assustada, mas como não tivesse controle nenhum sobre o movimento que eu fazia e que se concentrava entre suas pernas ela retomou a expressão de prazer e mordeu os lábios encharcados com a minha saliva. Segundos antes de gozar, puxei-a novamente pelos longos cabelos e gozei sobre seu rosto, como se cuspisse uma segunda vez. Ela fechou os olhos e se colocou a disposição.

Retomando o fôlego e deixando pingar as últimas gotas de sêmen no chão, que eu arrancava de dentro pressionando o indicador e o polegar sobre a cabeça do membro, fazendo um movimento que ia da parte superior da glande e do prepúcio até a ponta - como se ordenhasse uma vaca - senti o calor se esvair, o suor que escorria abdômen abaixo, e como se uma criatura completamente diversa daquela que acabara de gozar assumisse o comando, virei de costas e fui até o banheiro, trazendo – na volta – uma pequena toalha que entreguei a ela para que enxugasse o rosto. Ela me agradeceu com um sorriso, como se eu fosse o cara mais amável do mundo. Eu, então, tomei aquele rosto entre as minhas mãos (Até ali não havia reparado na beleza ingênua que se descolava dele, como uma máscara delicada que se desfaz com o toque bruto) e acariciei como acariciasse uma criança ou um cachorro (pois até hoje não sei ao certo a diferença entre o carinho que se deve entregar a uma criança e a um animal de estimação). Os olhos dela, a partir daí, se encheram de água e ela quis chorar, mas não deixou que uma só gota escorresse. Os olhos, que tanto líquido haviam produzido, foram os mesmos que absorveram cada gota não chorada, cada lágrima não descida. Levantou-se dos joelhos no chão que, provavelmente, já sentia doer, e se recompôs. Catou a calcinha, esticou o vestido e esperou que eu tirasse 150 reais da minha carteira e entregasse a ela, conforme fiz logo depois.

- Obrigada! – ela disse não sei se com ironia ou por sincero agradecimento. – Obrigado você! – eu respondi e responderia fosse pela honesta graça ou pelo sarcasmo.

Levei-a até a porta.

Sentei-me no sofá e procurei sentimentos por entre os escombros do que havia sobrado dentro de mim. Certo era que um monte de culpa se fazia conviver com alguma emoção mais claudicante, reticente, e que não deveria estar ali. Pensei por um segundo estar apaixonado. Mas me desfiz do pensamento. Não sei, de fato, o que é a paixão e a poderia ter tomado por coisa muito mais frívola, como já antes tomara, aliás, quando após uma refeição magnífica meus pensamentos se dedicaram tão intensamente àquele prazer que certa vez acreditei estar apaixonado por uma lasagna. Ademais, paixão não é coisa que se compre com 150 reais. 150 mil talvez, mas isso não cabe aqui especular.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O pintor de paredes


"Wir fühlen den Schmerz, aber nicht die Schmerzlosigkeit"
(Sentimos a dor, mas não a sua ausência)
Arthur  Schopenhauer



Fecho os meus olhos e outros dois olhos, de repente, aparecem diante mim; diante de meu peito ou ao meu redor; uma imagem que se espalha e contamina aos poucos o espaço de minha percepção; não são, no entanto, olhos de verdade o que vejo; e como poderia vê-los de olhos fechados? São olhos não porque “ser” lhes funde em alguma verdade, mas porque uma existência sutil lhes entrega o caráter de ‘coisa no mundo’. Olhos pintados por mãos invisíveis - a memória é uma artista tão delicada; detalhista, algumas vezes e outras, apenas delicada. Pois há esses momentos em que se apega somente ao essencial; desfaz o contorno preciso em forma que já não se quer definida; derrama sobre o espaço intangível entre os olhos e a alma a cor que dia houve visto em círculos e elipses em vida e movimento. Agora, no entanto, retém perene e objetivamente apenas seu nome: azul. Mas a palavra, somente, não faz jus aos olhos que dia estamparam essa cor; a mesma cor, talvez, que Agamenon um dia viu sobre o Egeu quando da sua investida em direção a Tróia. Mas também esses olhos, os do herói grego, não tem verdade que não seja apenas o reverberar de um sentido que dia fez nascer a palavra, ecoando através das vozes que se seguiram à voz de Homero ou nos palimpsestos gravados a custo de mãos que hoje já não mais pintam.

Abro meus olhos e aqueles olhos outros permanecem diante de mim sem dirigirem-se aos meus, pois sua imagem imprecisa não se delineia através da visão e nem é o sol quem a alumia; esse mesmo sol que um dia iluminou a visão que Galileu teve do azul num céu à luz do dia; o sol que Copérnico descreveu, talvez, como um nome apenas e em nome de uma visão que não era, todavia, a dos olhos seus.

Respiro fundo e sinto o cheiro do mofo que cobre as paredes do quarto. Mas faço surgir renitente a imagem da pele, cuja cor dá também vida a uma pintura nascida sem tela. Mas pele, branca ou bege, pontuada por sinais mais escuros como que pintados à ponta de um lápis, essa pela não exala, como se pede, o cheiro que um dia teve lugar sob minhas narinas. O cheiro não é, com efeito, da memória um talento exemplar; permanece intocado. Quanto mais aspiro mais é, nada obstante, o branco (e tanto menos o bege) - da superfície por onde se espalham aqueles pequenos sinais - que sobe e me penetra os pulmões em imagens visíveis ou quase, sem odor algum a evocar. Se sob as narinas vigilantes, todavia, esse aroma exalasse novamente, eu poderia tê-lo outra vez e reconhecê-lo. A memória é um pintor virtuoso mas um perfumista apenas medíocre ou nem isso; e se nem mesmo no espaço memorial rarefeito tenho eu a presença do cheiro, pouco tenho as palavras que me possam nessa arte delicada guiar para retomar da baunilha outra coisa que não o amarelo vivo das suas flores.

Como guiasse, na memória do músico, o timbre, os intervalos e as notas de canção silenciosamente retomada; porque também ali a harmonia permaneceria incógnita se não houvesse sabor e individualidade em cada som que se evoca. Mas a minha lembrança é nesse campo, ainda, uma orquestra vacilante. Pois quando penso na voz é a imagem da boca a mexer o que surge ao redor dos meus ouvidos. Aquela voz que um dia antes sussurrou em um ouvido meu, não retorna e não me parece haver meios para fazê-la retornar senão no que se pode rever do resvalar ruidoso do ar sobre os lábios rosados e um quase tom agudo, desvanecido, de quando um dia ouvi tal voz a cantar. É dos instantes em que ela sumia, entretanto, que a lembrança se faz mais rigorosa. Gravou-se dessa voz o silêncio numa imagem, ainda que intangível, para olhar; era o silêncio a nota dominante, sem dúvida, porque eram a mesma sentença o canto e ar que escapava através da garganta. 
  
Posso ainda vestir um corpo ao redor daqueles olhos, sob um tecido florido, prender-lhe cabelos ao redor de um rosto refigurado, ou ainda despir esse corpo e retomar novamente a imagem da pele branca, reinventar seios – como eram aqueles – pequenos e disformes como os de uma jovem há pouco tempo ainda criança, ou ainda o umbigo, que é agora apenas um pequeno orifício acima da pélvis, uma imagem sem fundo e sem superfície; um buraco negro que pede por ser esquecido pois que os dedos não mais lhe podem tocar.

Além de tudo, a memória não tem volume, não tem textura ou opacidade, pois detalhista ou não nunca nos leva ao centro daquilo que se empenha em mostrar. Nem as sensações e os sentimentos que nasciam no meu corpo quando da presença daquele outro traduzem aspectos de realidade alguma, já que a memória não se alimenta daquela matéria, mas das tintas dos sentimentos de agora. Talvez seja querer demais da memória, essa gravurista ambiciosa, não mais que oportuna, quando o caso requer mais que o naturalismo da pintura de uma paisagem ou natureza morta. Pois a essência não é apenas o azul que nascia nos olhos ou o cheiro do branco descansando sobre a pele, não é nem mesmo a transparência da voz na forma silenciosa do ar entre os lábios, nem é, ainda, os contornos do corpo ou menos o tecido e os cabelos ao seu redor.  A memória, ainda quando uma fotógrafa experiente e tenaz, não pode exprimir a essência quando se pede que essencial seja tudo: O todo, as partes e nada mais.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Mal Secreto


Na mesa vazia, uma carta se apoiava silenciosa. Pois nem a mesa vazia, vazia estava, nem a carta se via, já que o envelope, fechado, a fazia adormecer. À volta, uma sala sem rosto. Um espaço não demarcado, escuro ou semi-escuro, já que vultos transparentes circunscreviam o ambiente ainda por ser descrito. De fato, não apareciam, mas se deixavam mostrar, ainda, nos limites, nas bordas da imagem que nem forma tinha; imagem sem remetente, como a própria carta ali dentro de um envelope quente.

É de se supor que o texto fazia menção a alguém, se dirigia a um outro e, muito provavelmente, guardava consigo as frustrações, desejos, idéias, os vícios, perturbações, cacofonias, inclinações, gestos e ensejos, alegorias, ignorância e domínio de algum dispositivo autômato que fazia de seu senhorio também um autor. Mas o texto - o texto mesmo - palavra e palavra conforme o que se lia; se leu ou lerá, não estava à vista. E alguém, por certo, por isso se pôs também aliviado. Porque também curiosidade e desprezo, zelo e audácia, preocupação, perspicácia e contexto, eram em nomes as sombras, traços quase visíveis dos vultos que ao redor da mesa - e da carta – circulavam no espaço de dentro da sala, ainda que fora das margens. Já que a topologia do oculto é esse virar ao avesso do plano; olhar de um lado e do outro sem ver a dobra, sem ver o verso, sem frente nem costas nem lado nem todo – apenas o intermitente e pulsante indeterminado.
    
Mas sob um olhar atento, mais fundo, ver-se-ia que a mesa tinha do metal a textura, que a carta dentro do envelope, cuja superfície brilhante acusava da substância o seu plástico, era de alguma matéria orgânica, ou quase orgânica, arrancada a um ser outrora vivente e a tinta vermelha do texto (pois vermelha devia, a tinta, ser) seria urucum ou cádmio, ou ainda algum óxido, ou extrato de algum vegetal amargo, ou, quem sabe, sangue de algum animal ainda não conhecido, produzido em laboratório ou nascido do cruzamento impróprio de duas espécies inimigas e incorrigivelmente bélicas. Sob essa escrupulosa atenção, poder-se-ia perceber que o negro do chão não era apenas da luz a ausência, mas de algum óleo negro ou carvão, que se tivessem pés esses vultos deixariam marcas e acusariam a presença indevida ou inoportuna que a carta velada lhes recusava; que se tivessem peso esses vultos afundariam até os joelhos e alardeariam suas pretensões escusas em gritos de socorro; e nesse instante o olhar à distância desconfiaria da realidade da mesa flutuando sobre a superfície negra, enquanto o envelope, por um instante, pareceria não estar mais ali. Porque não se pode olhar em detalhe ao mesmo tempo o corvo no alto e o bisão agonizando; não se pode ver em um único quadro o Brutus e o imperador apunhalado; há que se recorrer então a outros termos; imagens outras e outras vozes, outros nomes; já que a realidade não é atributo de um ente e nem uma virtude fantasmagórica do ar que cerca a matéria. Realidade é contexto, e apenas por sugestão de uma leitura não feita poderiam existir ao mesmo tempo a carta e tais vultos, já que a cola que lacrava aquele envelope era - e pouca dúvida parece restar sobre isso – a síntese e o suor de uma mentalidade vil; a força descomunal, lâmina e as serras de uma arma branca sem cor; pois era o lacre a própria medida do texto que se fazia ameaça e nem os vultos saberiam a distância entre eles e o objeto que lhes dirigia diligente atenção, porque esses vultos não tinham olhos e nem percepção alguma do espaço.

Quando alguns séculos mais tarde, uma palavra lançou renovado interesse pela existência passada e confusa de um texto que seguiu intocado por olhos humanos durante todo tempo em que se deitou silencioso e a espreita sob a fina parede de um envelope branco, historiadores argutos declararam haver decifrado o enigma e repetiram adiante conforme as leis das instituições que arcavam com os custos de suas pesquisas:

“Desejo todo mal do mundo a vocês.”

Mas permaneceu, ainda, não revelado quem houve assim desejado e a quem, por direito, o desejo se dirigia. Pois a ciência desses homens não atende ao interesse de outros homens senão ao seu próprio interesse. Do mesmo modo como, provavelmente a carta, se filiava também a um interesse marcadamente particular.
     

sábado, 7 de julho de 2012

Dinheiro é nome próprio ou O nascimento da tragédia


Numa rua antiga no atual centro do Rio de Janeiro, a iluminação insuficiente, ainda que elegante, pairava sobre dois homens a conversar em tom amigável. O primeiro, mostrando ao seu interlocutor uma arma, orientava este sobre os dispositivos mecânicos através dos quais a arma dispara, desde o percutir do “cão” sobre a parte de trás do cartucho, fazendo arremessar um projétil em alta velocidade capaz de perfurar  com alguma facilidade o corpo de um homem, até às implicações do manejo e os riscos, para o próprio manuseador, por desconhecimento técnico e utilização imprópria do objeto. Disse ele:

- Como podes ver, tal engenho é justificativa razoável ao menos, embora talvez não tão nobre, para que façamos dar seguimento ao roteiro no qual você me entrega o dinheiro o qual dispõe na carteira, e eu me encaminho na direção contrária a sua, logo após a transação concluída.

O segundo homem, que ouviu com interesse ímpar as descrições técnicas e a lógica irrefutável da conclusão daquele exímio “negociante”, interpelou-o com ares de leigo, mas antes sem deixar de mostrar algum respeito pelo domínio e conhecimento que o outro possuía sobre o seu artifício:

- Mas isso é mesmo capaz de perfurar o corpo do um homem? Digamos que o homem tenha tônus muscular acima da média, ainda assim seria essa arma capaz de perfurá-lo desta distância em que nos encontramos um do outro? E, afinal, tendo o corpo perfurado por um projétil tal, como o que você menciona, poderia esse homem morrer em decorrência disto?

Neste momento, o senhor com a arma olhou para o chão, estabeleceu o rosto em uma determinação fisionômica que o fazia parecer pensativo e, calmamente, apresentou suas considerações sobre a pergunta do outro:

- Bom, não tenho dúvidas de que, a essa distância, mesmo o homem cuja densidade muscular seja bastante acima da média, teria seu corpo perfurado por um projétil como o que se encontra nesse momento engatilhado neste pistola. Embora, atingindo em seu trajeto, quem sabe, um osso, poderia ser o caso do projétil não atravessar todo o corpo no caminho em que se conduzia. Se tal perfuração, de todo modo, seria causa mortis nos termos que tomo da tua questão, isso me parece um tanto mais difícil de prever. De fato, tal conseqüência dependerá de inúmeros fatores que não posso calcular com precisão antes do fato decorrido, mas creio que numa escala de possibilidades, tendo em vista as condições que se nos apresentam neste momento, considerando a figura do senhor mesmo como do dono do corpo a ser perfurado, acredito ser muito provável uma morte decorrente deste possível disparo.

Apenas depois da resposta e após considerar os possíveis danos em detrimento da quantia que trazia acumulada na carteira, o homem dirigiu ao bolso as mãos e de lá puxou, também calmamente, a carteira em couro marrom da qual retirou a quantia de cento e cinqüenta e oito reais, sendo entregue ao senhor com a arma em três notas de cinqüenta, uma de cinco, uma de dois, e uma pequena e reluzente moeda de um real. O homem tomou o dinheiro na mão que permanecia vazia, a mesma mão que o artista usou para indicar as partes e os movimentos das peças da arma naquela sua descrição feita sobre os mecanismos desta, contou com aqueles olhos interessados e matemáticos de quem tem em mente as necessidades e desejos que lhe regulam o consumo, e concluiu não ser necessária a moeda que lhe havia sido entregue pelo agora pobre camarada, que apesar da pobreza agora evidente no esvaziamento sumário de sua momentânea fortuna, trazia ainda sobre a cabeça uma cartola, mantendo ares de aristocrata em concordância com o fraque que vestia e a gravata borboleta que se enrolava em seu pescoço.

Ao ver o diplomata afastar-se com o dinheiro que, alguns minutos antes, guardava sob sua tutela, concluiu em voz alta, projetando ao vento e ao espaço desabitado a sua volta as palavras que seguem:

- Se é mesmo verdade o que me dissera aquele astucioso cavalheiro, e dispositivo tal como o que trazia em mãos é mesmo capaz de perfurar o corpo de um homem, situando-o numa escala de possibilidades em que a morte é uma conseqüência provável, deverei eu mesmo utilizar as posses de que ainda disponho, em casa o no banco, em aquisição de modelos como aquele. Dispondo ainda de homens instruídos no uso e funcionamento da ferramenta, que receberão justo valor pelo cumprimento da atividade que seguirá, posso recuperar o dinheiro investido nas armas, além desses cento e cinqüenta e sete reais que acabo de pagar ao senhor pela lição e pela idéia.

O inspirado cavalheiro, então, levantou a cartola com uma das mãos enquanto alisava o cabelo com os dedos da outra, e tornou a posicionar o chapéu sobre os lisos fios daquela iluminada cabeça.

Naquele mesmo dia, um pouco mais tarde na noite, o homem pensou e repensou, desenhou digramas e esquemas, elaborou fórmulas, calculou todo o processo, definiu e tomou nota:

- Chamarei, a esta atividade, comércio!   
            

domingo, 10 de junho de 2012

O observador submerso


A perede de vidro refletia meus dois grandes olhos redondos, sempre abertos, e meu corpo vermelho, escamoso e alongado. Quase não podia ver o outro lado, embora reconhecesse que alguma coisa, monstruosa talvez, se erguia por trás daquele vidro transparente, minha imaginação não era suficientemente complexa para especular muito além das formas repetidas que eu conhecia dentro daquele aquário: o cascalho colorido, o baú borbulhante ou a pequena caverna sob a qual meu caro amigo Uéslei se encostava quase todas as noites, se misturando a paisagem como se ele mesmo fosse um acessório de decoração.

Atrás de mim, Jeferson e Euclides, respectivamente um acará e um paulistinha, discutiam sobre uma questão que lhes parecia essencial. A ração, que aparecia todos os dias – as vezes duas vezes no mesmo dia – na superfície da água, se esparramava ali sem alguma regra ou dirigida a alguma ordem estabelecida. Lacerda, um poderoso bagre de corpo prateado, era o primeiro a chegar e ninguém se atrevia a incomodá-lo em sua refeição. Estabelecida que estava uma certa autoridade baseada numa simples medida de força e presença. Também assim era quando um companheiro morria, como no caso do falecimento de Tânia. Ao perceber que ela não ia bem, Moisés, Waltinho e Manduca, três mato-grossos atrevidos que andavam sempre em grupo (Até se anunciavam pela alcunha de The magicians de modo a angariar alguma publicidade em favor de sua suspeita agremiação), iniciaram pequenas investidas nas quais abocanhavam aqui e ali uma lasca ou uma escama de Tânia. Ela, por fim, faleceu e seu corpo logo se recostou no cascalho no fundo do aquário. Logo chegaram os outros todos para ver e tirar um pedaço. Uma grande festa e com muito entusiasmo, todos nós nos servíamos até a chegada de Lacerda. Ele não precisou de uma palavra: seu corpo simplesmente se estabeleceu flutuando sobre o cadáver de Tânia. Se movimentava freneticamente afastando todos os peixes menores em um perímetro em que se conservava com clara autoridade um ambiente tenso e silencioso no qual Lacerda faria uma refeição farta e egoísta também, devo dizer.

Euclides, um tanto indignado com a forma como autoridade se estabelecia, incompreendendo a apatia e resignação dos outros viventes daquele universo, perguntava a Jeferson o que ele pensava da justiça e se essa idéia alguma vez lhe passou pela cabeça em um outro esquema, balizado antes pela simetria das causas diante das partes e da proporcionalidade estabelecida dentro das virtudes e necessidades de cada indíviduo, não sendo medida apenas por fator tão tacanho e simplista como aquele, de mero tamanho e força física, em que se sustentavam ali as relações de uma primitiva economia alimentar. Jeferson, por outro lado, indicava acreditar muito nobre a idéia de justiça sobre a qual acabara de ouvir seu eloqüente amigo dissertar, mas ponderava um egoísmo primordial que parecia sustentar todo e cada peixe naquele viveiro, cujas bocas mastigavam alheias às fomes particulares de seus coetâneos, cujos corpos navegavam quase sempre a parte e em uma disposição que obedecia apenas as suas próprias vontades, salvaguardando exceções como os neons: peixes que pareciam constituir um corpo coletivo onde raras vezes se viu a marca de um comportamento individual. Esses, aliás, eram muitas vezes tidos mais como alimento (astuto conquanto disponível aos maiores e mais velozes) que como criaturas capazes, pensantes e merecedoras de algum respeito.  Por fim, Jerferson questionou seu caro colega Euclides, se ele mesmo, fosse como Larceda corpulento e intimidador, não se faria dos privilégios a revelia daquele ideal de justiça que acabara de defender. Antes que Euclides pudesse dar uma resposta, Manduca se intrometeu na conversa, seguido por Waltinho e Moisés, perguntando a respeito da discussão em pauta e quase imediatamente lançando seus pontos de vista, atropelando-se uns aos outros em falas que se dificilmente distinguiam.  Apesar disso, pude perceber como cada um trazia à discussão um senso de justiça particular, e a confusão que se estabelecia sonora, conforme gritava um e outro para sobressair sua voz a de seu interlocutor, parecia uma metáfora da precipitação ideológica que se desprendia da variedade daquelas personalidades e convicções.  

Naquele momento, eu recordei com saudosismo o tempo em que eu era apenas o caroço de um abacate, quando o silêncio que me cercava era também a unidade e a perfeição de uma idéia chamada justiça, indivisível e inquebrantável, que eu compartilhava apenas com o espaço úmido e cremoso a minha volta.

     

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Um filósofo, um travesti e um papagaio


Três homens caminhavam por sobre o couro calvo da cabeça de um gigante, este sentado em uma cadeira minúscula, que estaria, certamente, mais adequada às proporções daqueles três que encimavam o monstro que ao próprio senhor, cujo peso que sustentava sobre a cadeira  era pelo menos vinte mil vezes maior que o indicado pelo fabricante do assento para uma utilização supostamente segura. A cabeça calva daquele senhor, no entanto, oferecia espaço suficiente para que os três cavalheiros circulassem pensativos, de lá para cá, em provável busca por resposta a pergunta que se havia formulado segundos antes do início da cena. E se os pequeninos pés sobre sua cabeça não o incomodavam é porque nas mãos o gigante trazia um livro que roubava cada centímetro de sua atenção (que poderia também ser medida em litros tão prontamente uma conversão fosse solicitada) fazendo-o ignorar esses antropomórficos insetos que lhe bagunçavam o escalpo.

O primeiro cavalheiro, baixo e gordo, trazia no rosto um enorme bigode, que alguns anos antes havia sido companhia de uma vasta barba e cabeleira. O cabelo, embora um pouco mais ralo, se mantinha sobre o cucuruto, mas a barba havia sido vítima de uma curiosa alopécia que o acometeu na região do queixo e das bochechas, determinando a queda gradual de todo aquele pelo que antes envolvia seu rosto, deixando agora apenas um bigode, solitário conquanto orgulhoso, dando ares de lusitano ao homem que atendia pelo título de filósofo - e se lhe fosse questionado o dado, imediatamente ele puxaria do bolso uma sumária e irrepreensível identificação indicando a veracidade da titulação.

O segundo, de cabelos longos, fartos seios e trajando um vestido vermelho justíssimo, era, em verdade, um travesti. Caminhava pensativo e rebolante enquanto girava uma pequena bolsa na altura da cintura quase onde terminava o vestido, que assim deixava expostas as coxas e boa parte das nádegas. O primeiro cavalheiro o teria tomado por mulher, não fosse ele mesmo filósofo, ou seja, homem de cuja sabedoria se poderia destilar com suficiente raciocínio as desavenças entre as configurações de gênero que atestavam o homem não ser, de fato, mulher.

O terceiro homem, consideravelmente menor que os outros, sustentava o corpo verde coberto por penas (ou o corpo coberto por penas verdes, desde que os olhos que enxergassem fossem suficientemente conscientes para se dar conta de que o corpo embaixo das penas não tinha cor, uma vez que não podia ser visto) sobre duas estreitas garras que marchavam, em passos comedidos, à direita e à esquerda. Era, na realidade, um papagaio. Nesse ponto um leitor poderá reclamar contradição a minha iniciação nesta narrativa: “Como poderia ser um homem e ao mesmo tempo um papagaio essa curiosa criatura?” - A esse leitor, justifico que não há contradição alguma. Tratava-se de um papagaio e não de um homem e se foi dado a entender de outro modo num primeiro instante, deve o leitor considerar-me com mais cuidado e recúo. Entenda, pois, esse que vos narra não é seu amigo e não tem, portanto, a pretensão de lhe ser honesto todo o tempo. O caso é que o papagaio falava e, se lhe fosse perguntado sobre a razão de ser ou não homem, poderia muito bem responder ao revés de sua condição aparente. E nesse caso poderíamos tomar por mentiroso menos o narrador - que atendendo a descrição de si dada pelo pássaro se faria enganar sobre os fatos - que o próprio papagaio, esse sim galante na astúcia tanto quanto sórdido na resposta, uma autêntica e inescrupulosa rapina da boa moral e do senso de ética. Mas isso não aconteceu, pois o papagaio, assim como os outros dois homens, se punha a pensar na questão desconhecida que impulsionara a narrativa; e essa não versava, muito provavelmente, sobre os termos da sua condição espécime.

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Repare o leitor, que a cena constituía-se em presença das figuras descritas e seus acessórios e da pequena cadeira. O espaço a volta, não tendo sido posto em diligente descrição, poderá ficar a critério daquele que imagina. Como sugestão – apenas no sentido da sugestão, todavia – eu mesmo recomendaria como cenário, o fundo de um aquário decorado com uma carcaça de um pequeno navio de plástico, por onde levantariam pequenas borbulhas de ar a cada cinco segundos, corais e algas reluzentes desenhados ao fundo, como num papel de parede perfeitamente encaixado aos moldes do vidro do aquário. Nesse caso, deverá o próprio leitor dispor da imaginação necessária a ajustar nesse quadro a figura do gigante sobre a pequena cadeira com o livro em mãos e os três cavalheiros (um dos quais, papagaio) e suas devidas proporções para que não se desvaneça a harmonia da cena.
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Após segurar os olhos sobre livro durante algum tempo, pareceu que alguma outra coisa chamou sua atenção, quando a parte escura e circular de cada olho seu começou a ganhar movimento circular dentro das devidas órbitas, como que indicando uma dispersão imperativa, fosse por vasculharem esses olhos o espaço em busca de um inseto voador sobre cujo zumbido não se teve notícias nesse lado da história, ou fosse um surto convulsivo iminente que tomasse forma a medida que algum dispositivo fisiológico no corpo do gigante o fizesse perder o controle das esferas oculares. Os olhos pararam-se e ouviu-se, então, um reco-reco barulhento como o de uma serra, conforme uma estreita linha se desenhava na altura da testa pouco acima das sombrancelhas. Alguns segundos depois da linha atravessar toda a testa, desde uma visão frontal – e, portanto, parcial – do gigante, o barulho cessou. Os três cavalheiros se desviaram de seus pensamentos, preocupados com aquele som que se iniciara e terminara como no resoluto ecoar de uma ação objetivamente desdobrada no tempo e finda bem sucedida, se entreolharam e fizeram caretas quando sentiram o chão abaixo de seus pés mover-se. Naquele instante, como uma catapulta arremessando aquelas criaturas outrora pensantes, foi assim que se seguiu quando, descolado na altura da linha traçada na testa, o tampão da cabeça do gigante se abriu, alavancando da direita para a esquerda aqueles três e se pode ouvir seus gritos – vozes minúsculas e agudas como agora se podia vê-los quando o gigante assumia proporções de um homem mediano. Só, então, foi possível enxergar em foco e com nitidez o título que estampava a capa do livro que o homem tinha nas mãos, sobre uma cadeira ainda inadequada ao seu tamanho.

Dizia o título: “A metafísica onde menos se espera” e concluía com um subtítulo bastante sugestivo: “Homens domesticam cachorros, cachorros domesticam pulgas, e as pulgas domesticam os deuses, por P. S. Higgs” 

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Uma raposa



De pelo escuro, dentes afiados, corria sobre quatro patas ágeis e coordenadas.

Não! Engano meu... não era uma raposa, mas um rato.

E roeu todo queijo que lhe servi gentilmente sobre uma pequenina ratoeira de prata.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

The Kiss



‘You are the prettiest girl I have ever met,’ the boy said timidly, as his shyness, the shyness that made him hunch his shoulders, was equivalent to the desire that urged him to speak. The girl smiled and hesitated to respond. Even though she had seen the insecurity of the boy as a weakness, she couldn't help feeling a flattering enchantment provoked by those words coming from such a candid creature. In the same timid manner she replied: ‘Thank you.’ It must be noted, nonetheless, that her shyness was flirtatious and nothing more.

 

The boy, standing in the opposite side, instantly filled himself with confidence, resembling a rosebud that, in an instant, blooms within the rocks, the earth and those trees that retain with the world a perception extended throughout the decades and centuries. He slowly guided his hands to hers, taking them in with his eyes. Returning his gazed once more toward her face he said: ‘I wish I could look at you all day, all the time.’ The pause he made before continuing did nothing other than give echo and profoundness to the words that would follow: ‘Your smile reminded me that things still more beautiful than words can spring from the lips.’

 

Its not to say that poetry is for women, particularly those as young as she, a more powerful aphrodisiac than the body and the hormones; but only that the vanity that shapes the more philistine female behavior requires that there be more substance in the approach than a kiss taken by force or surprise. And since her eyes were now all his, the smile – that just one second ago was the strength and the grace of an unsuspicious praise – dissolved itself in the pursing of lips that called for the boy to advance and act as the occasion requested. As his face slowly moved in, her face accordingly indicated a meeting. Then, from his lips, proud and impatient to narrate the moment, slipped the following words: ‘It’s now or never.’

 

In the exact instant the words reached the air, the girl – in accordance with an irreprehensible symmetry that gave just proportion to the demerit of the last verse – extended her hands to the boy's chest interrupting his movement and inquired: ‘What did you say?’ But no answer was necessary; since the ears that heard the sentence with such shock were those same attentive ears that had previously been delighted with the teasing and boasting that had taken place. And so she declared her indignation shaking her head and repeating two or three times, searching for the right intonation: ‘I can’t believe it!’

 

Thus, before the boy could explain, correct or amend his conduct in the face of such imminent failure, she turned her back and uttered a single word: ‘Never!’

 

In poetry, as in prose, it follows that every word – innocent as it may seem – is subject to the previous; and the sentence, that is read or heard in a moment, leaves behind in time and memory the one that precedes it. Just as it happens when a dog in search of an animal senses its smell more evident and present the more recent the passing of that animal, such is the way a poet should face its reader. In the case of the dog being the one holding pen and paper, the trail shall be that which exudes from his own tail and nothing more.

sábado, 21 de abril de 2012

A prosa do impressionista

Contornos disformes se destacavam nos semitons e nas sombras as quais sugeriam volumes àquelas superfícies que se dispunham num espaço inteiramente constituído de substância viscosa e plasmática. Compreender que alguma diferença de densidade entre duas pequenas massas - que se movimentavam a parte de todo resto substancial presente, num espaço nem definido por um contorno preciso (como um quadro) menos ainda estendido para além de alguns metros quadrados que a consciência menos precisa pudesse perceber – e a massa que as envolvia no espaço seria o suficiente para tomá-las como organismos em desenvolvimento de alguma vida que se situasse ali. Mas isso porque uma tentativa de compreensão como essa ignorasse o colorido efusivo e inquieto que se movimentava dentro das formas. As cores, de todo modo, eram também repletas de alguma vida e se poderia ver nelas também formas se a imprecisão do contorno formado entre uma cor e outra vizinha, muitas vezes gradações sutis de um mesmo tom, fosse deposta por uma visão absoluta em que se veria cada cor como uma apenas, fazendo as manchas que se derramavam em luminosidades contorcidas sobre toda a superfície, e mesmo nas formas avolumadas no espaço tridimensional, se consolidarem em formas concisas e presentes, quando já a tridimensionalidade se dissolveria numa imagem plana e as massas, que antes se personificavam na idéia de um espaço materialmente tangível, se subtrairiam a nada. E se fosse possível imaginar um diálogo que através daquele cenário fizesse falar a personalidade de cada cor-criatura ali depositada ao lado e ao estreito de uma outra - quando já mesmo nem o espaço existisse senão uma malha obturada de criaturas-cor justapostas em um enredo que se desenvolvia conforme as mudanças de posição, sutis em alguns cantos e mais bruscamente em outros – esse diálogo assim se daria, se os ouvidos que ouvissem fossem capazes de traduzi-lo: - Sou! – Disse um vermelho pleno de si e consciente da própria unidade que sustentava sua forma. E, então, de ombros dados a um vermelho vizinho, um tanto mais escuro que ele mesmo, refaria a declaração numa dúvida direcionada ao caro semelhante (completamente outro na homogeneidade estendida da forma, mas repleto de uma natureza similar que o próprio vermelho reconhecia, reconhecendo no outro a presença daquele mesmo vermelho que era ele mesmo em pureza) : - Sou mesmo? – Mas esse outro, que ladeava toda aquela forma central – cujo formato, nunca antes definido numa língua conhecida em apenas uma palavra, é aqui indescritível – em um contorno que parecia repetir, em tamanho ampliado, a forma daquele em seu centro, não lhe deu resposta e se limitou a divagar em uma sentença retórica: - Ah, a dúvida! A eterna dúvida.- A locução se propagou daquelas duas criaturas para as que se dispunham ao redor, alcançando outras manchas ao centro de outras em outros cantos da imagem. Verdade que a cada cor-criatura só era dado ouvir àquela imediatamente ao seu lado, e não fosse por essa razão em um determinado momento seria possível ouvir um burburinho que se inflamava desde aquela primeira questão até derivadas outras que assumiam complexidade em contexto, do mesmo modo como as cores que se movimentavam e davam vida a uma imagem confusa e sem fundo. - Sei que há algo antes de mim e, provavelmente, algo também depois. Não posso ver, tocar, ou ouvir, mas alguma natureza dedutiva de meu intelecto é capaz de supor que se há algo de lado meu e há algo também do outro, deve haver também lados aos lados desses que me ladeiam. – Disse um lilás que formava um anel ao redor de azul estático que se punha dele ao centro em forma elíptica. Enganava-se, pois, uma vez que tal azul que o lilás tomava ser, por razão de um pensamento indutivo (e não dedutivo como ele mesmo pensava), também o lado de fora de um outro dentro estava preso aquele perímetro e ouvia somente a voz de seu amistoso vizinho. E logo se pôs a argüir o azul: - Lado?! Do que se trata? – Nesse momento, o paciente lilás tentou sumariamente explicar àquela ingênua criatura, sem ter acesso ao conhecimento da topologia indivisível daquela elipse: - Quando digo lado me refiro a uma idéia tal como a de posição em que as coisas participam com as outras de uma maneira espacialmente distinta, tal como há uma posição determinada a você aqui e uma outra determinada a outro em posição também outra.- Mas o azul incompreendeu aquela fala uma vez que, não haver tido a experiência de uma situação tal como a que enfrentava naquele momento o lilás, o impossibilitava de dar aqueles termos significantes, significados condizentes com os pretendidos pela subjetividade da cor sua parceira única em uma existência visível e limitada. Ao mesmo tempo que o lilás, não havendo experimentado a posição central daquele azul que estabelecia para esse uma topologia monolítica, era incapaz de conceber tal centralidade e, por isso, incapaz de reconhecer tal realidade mesmo que em palavras a criatura elíptica houvesse vindo a ela dizer. De quando em quando, o movimento das cores se encontrava em uma imagem que fazia lembrar aquela cena primeira em que o aspecto ali visível ganhava materialidade ao dispor de uma substância plasmática que parecia conter aquelas tantas cores, e novamente era possível reencontrar as duas formas distintas em massas sem forma definida que pareciam se movimentar em destaque, fazendo de todo o resto apenas espaço, cenário, paisagem. E também a essas formas seria possível atribuir um diálogo se os ouvidos a espreita deixassem-se imergir no silêncio profundo que se afogava naquele plasma, pois ouviriam não conforme esses modelos emitissem som algum, mas porque seriam ouvidos imersos no absoluto de uma consciência que se desprendia visível, porquer seria uma consciência própria da imagem visível. Diria, então, uma das massas a qual parecia circular ao redor da outra (essa em movimento mais lento): - Comprei um aspirador de pó da Electrolux e uma semana depois o filha da puta já não funcionava mais. Acredita? – No que a massa mais vagarosa respondeu enquanto parecia girar entorno de si mesma – Foda-se! Eu lá quero saber do seu aspirador de pó?! Vai contar essa história pras suas piranhas! Nesse momento, as formas e cores ganharam distância e reconheci-me eu mesmo em posse de visão embaçada e sem definição. Depois de alguns segundos, a imagem ganhou foco e percebi que se tratava da cidade iluminada por sobre um pequeno muro na subida da Rua Joaquim Murtinho em Santa Teresa. Dois homens ganhavam distância subindo a rua e eu, ainda um pouco atordoado, me iniciava num juízo bastante indiscriminado sobre aquela vista, como quem pensasse que um admirar tal como aquele em que eu me investia a uma vista da cidade do Rio de Janeiro à noite fosse mérito particular de uma consciência individualmente determinada e repleta de uma capacidade de juízo singular a que nenhuma outra consciência teria acesso e que, por isso, ao invés do elogio declarado que parecia iminente, deveria eu dar razão ali apenas ao silêncio.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Dois críticos debatem teoria literária.

O primeiro, sentado de frente para o apoio de costas da cadeira, onde ele apoia um dos braços enquanto o outro gesticula conforme a sua argumentação: - O texto politiza uma cena ordinária através de uma representação animalizada da luta de classes. A adolescente faz as vezes de uma burguesia tirânica, mas ao mesmo tempo lacônica, sem voz. Os cabelos coloridos enumeram as cores da superficialidade dessa classe, o consumo vazio, letreiros iluminados anunciando produtos sem razão ou significado. Os cachorros, no entanto, falam. Como na revolução de George Orwell, eles tomam consciência da linguagem através de uma investigação aproximada do mundo. É a mancha que lhes chama a atenção e os incita ao diálogo, mas não a mancha porque é visível, como a mancha porque tem cheiro. Trata-se de uma busca por essências e a revolução virá conforme esses animais perceberem que a mostarda, símbolo do capitalismo em voga, não os alimenta e o seu cheiro não é senão uma forma em sinestesia da conhecida visualidade superficialista dessa sociedade de consumo.

O segundo crítico, sentado a frente do primeiro, com as penas cruzadas delicadamente, repousa uma das mãos sobre o joelho enquanto na outra ele maneja um cigarro que leva a boca regularmente em um movimento carregado de expressão e efeminado: - Devo discordar de você, meu caro! A representação não tem em vista alguma revolução, muito pelo contrário. Não é a luta de classes que se lê nessas linhas, senão a própria rigidez de uma estrutura engessada concebida no âmbito de uma religião monoteísta. Os cachorros são conduzidos, ainda que em nenhum momento essas amarras da condução estejam explícitas; não se fala de coleiras ou correias, perceba você. No entanto, a adolescente, que é descrita secundariamente como fosse coadjuvante no enredo, tem papel central nessa estrutura; ela conduz. Os cachorros tem o dom da palavra e conversam entre si, mas o diálogo não chega aos ouvidos da adolescente que permanece alheia na narrativa. Ela é a própria metafísica, e a maneira como é representada sob a face de uma adolescente rebelde dignifica uma ironia sutil no interior do texto: a metafísica, não sendo acessível pelos sentidos (pela visão dos cachorros ou pelo olfato, que seja, que permanece recluso ao dispor insignificante de uma mancha de mostarda) deve ser imaginada tal qual um personagem, uma alegoria. Trata-se de uma adolescente de cabelos coloridos, mas poderia ser um mergulhador trajando um escafandro ou um homem em trajes antigos com barba e longos cabelos.

Por aí, a discussão se estende.

Mais tarde, entra em cena, uma ovelha. Ela cumprimenta os senhores críticos com um gesto positivo que faz com a cabeça e se senta no chão, sobre as patas traseiras. Inicia assim seu discurso: - Não pude deixar de notar que os senhores falavam a respeito de um texto em que dois animais ensejam um diálogo súbito e que parece dar margem as mais diversas teorias prevendo símbolos e alegorias que, talvez, e os senhores hão de convir que isso é uma hipótese razoável, não estivessem lá pensadas originalmente. Mas eu não vim aqui para cotejar uma declaração sobre as intenções iniciais do autor, nem para dizer-lhes equivocados em respeito as suas teorias, de outro modo, tomo o lugar apenas para encetar a minha própria teoria. Penso nos cachorros como a celebração do instinto. O autor, tivesse ou não em mente esse caráter impulsivo e natural da escrita, escreveu, simplesmente. Deu margem as imagens que o assaltaram em criação inoculada dentro de uma imaginação selvagem e escreveu. – Nesse momento, a ovelha faz uma pausa para se coçar; coça-se na altura das costelas com uma das patas traseiras, e continua – Ora, não é curioso que também a menina que se forma em sua imaginação tenha aparência incomum? A verossimilhança, quando confrontada com a imaginação mais bruta parece sempre referida por um aspecto significativo dessa brutalidade da linguagem, que deposita sobre as imagens uma sonoridade vulgar e conforma um quadro familiar e compreensível com seu interlocutor ainda quando das imagens originadas no absurdo. Mas a natureza dessas imagens é indiscutivelmente selvagem: o moicano sobre a cabeça da moça, os cachorros em diálogo, a mostarda, ah, a mostarda! Esse tempero tão ordinariamente ácido e indigesto. Devemos lembrar, que em qualquer das hipóteses, trata-se de um animal empunhando as palavras...

Antes que a ovelha terminasse seu discurso, um senhor idoso trajando uma fantasia de Super-homem invade a sala, interrompendo a locução da ovelha e pergunta diante do grupo: - Aqui é que acontecem as aulas de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos? – O cavalheiro com o cigarro na mão, já quase a queimar-lhe os dedos, respondeu ao senhor: - Não meu senhor. Aqui estamos debatendo teoria literária conforme o título do texto indica. Apenas essa ovelha intrometida é que não tem razão de ser, e agora o senhor, é claro. De todo modo, as aulas de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos acontecem na sala 403, logo no fim do corredor. – O senhor pede desculpas e se retira. O efeminado então atira ao chão o cigarro, que a essa altura constava apenas do filtro, e desviando o olhar do senhor a ovelha, sugere a retomada: - Você dizia...?

A ovelha olha para um lado e para o outro e em tom de fofoca, indaga ao cavalheiro que acabara de lhe dirigir a atenção: - Querida!! Quem é essa criatura esquisita que acabou de cair de para-quedas?!? – E o senhor, já excitado e totalmente entregue aos trejeitos que o particularizavam desde o inicio da cena: - Meu amor, isso aqui é assim todo dia! Uns bofes esquisitíssimos aparecem toda semana para essa aula de defesa pessoal contra insetos e aracnídeos. As vezes você esbarra com um com tentáculos pelo corredor, as vezes uma senhorinha quase batendo as botas com um par de óculos tãaaoooo démodé! Mas querida – e nesse momento o crítico olhou firme nos olhos da ovelha e fez as vezes de quem lhe daria um conselho: - A aula é ótima! Acho, inclusive, que você deveria se inscrever pra ver como é. Vi você aí se coçando e você sabe que pulga é aracnídeo, num sabe?

Nesse momento, a ovelha deu as costas ao cavalheiro erguendo ao alto o pescoço como que ofendida com a insinuação do crítico e saiu da sala sem nem ao menos um “bééé”. Os críticos se entreolharam e como que não entendessem a reação do animal, se levantaram, juntaram seus papéis e caminharam juntos até o elevador do prédio. Pelo corredor, esbarraram ainda com dois caquéticos senhores: um índio e um policial. E tiveram ainda o desprazer de testemunhar a nudez do homem obeso que, fantasiado de Adão, não tinha suficiente proteção para quantidade absurda de carne e pele que transbordava de seus ossos. Já no elevador, e antes que se despedissem, um disse ao outro: - Essa gente é horrível! – O outro respondeu logo em seguida: - Definitivamente uma gente horrível!

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu

Dois cachorros, conduzidos por uma adolescente sustentando um moicano colorido sobre a cabeça, pararam-se diante de uma mancha no chão da calçada e se puseram a cheirar com intensa curiosidade. Então, um disse ao outro: - É mostarda!

O outro, imediatamente retrucou: - Com certeza é mostarda!

quinta-feira, 22 de março de 2012

Humanista demasiado humanista

Brincadeira de criança. Profunda poesia pro tipo de inocente alma que se redime no encanto de imediatia com o outro. Bela figura desenhada por dentro das molduras tortas de um quadro de madeira pendurado sem planejamento na parede da sala. Mas as crianças conservam a mesma crueldade implícita ao instinto que vemos na labuta das Hienas sobre uma carniça tomada a força a outro carnívoro. E nem mesmo o mais insensível humanista será capaz de dizer que não há beleza na visão, de luta e sangue, estampada em uma tela de TV de 40 polegadas, do documentário referente sobre savanas africanas. Também o humanismo tem os seus limites. Ele acaba no ponto justo em que nos exige certa tolerância com as diferenças, certo relativismo de teor cultural, etário, ou inter-espécie. Porque o humanista, quando concede ao leão devorar outro animal sob o rechaço da tolêrencia, ele deve assim proceder: dizer do leão não-humano. Da mesma forma precisa admitir que um paquistanês que submete sua mulher, não estendendo a ela a liberdade que ele próprio garante a si, deve ser visto por certa lente de desumanidade para que não se impute a ele essa condenação que o humanista deve fazer a tudo que, entre os homens, não é humano. Ora, também uma criança aos 5 anos de idade é perdoada pelo tratamento injusto, vexativo e desproporcional de um semelhante sob a máxima tão difundida do "é apenas uma criança", como quem diz na verdade, "ela não é humana, ainda." Mas o perdão é uma virtude cristã e não uma ferramenta humanista. A tolerância por outro lado é o recurso mais a mão para um dessa classe e, no entanto, é fulcro de uma hipocrisia marcada no centro desse culto. O humanista não é tolerante porque é humano, mas porque priva o outro - em seu sentimento de alteridade - desse humanismo que ele mesmo assume ser algo como uma verdade fundamental: o outro, em sua visão, é digno pela falta de humanidade: é digno porque, apesar da indgnidade, não se pode pedir a todos que estejam a par desse conceito difuso e inconstante que é a verdade, que ele mesmo precisa duvidar por força de uma natureza humanista maior que traz ainda em seu bojo uma simpatia acentuada com relativismo. É, então, que o humanismo se perde. Não pode ser humanista se, em seu discurso, o paquistanês e a criança não são tão humanos quanto ele mesmo, insuspeito e incorruptível. Não pode ser humanista se o flerte com certo relativismo o induz a duvidar da verdade que é, todavia, pilar de toda sua razão: todos os humanos são iguais. Torna-se, assim, um demagogo. E ainda hoje as fronteiras que deveriam separar um e outro não são diáfanas e a imposição de um julgamento não pode ser feita com a mesma clareza e infalibilidade com que julgamos e condenamos o autoritário "humanismo" católico durante a idade média.

Pois quanto mais cedo os humanistas perceberem o risco corrente que sua ideologia enfrenta sob a suposta vernaculidade do relativismo em que se deixam confortar-se, serão forçados a tomar partido. Mas que partido será esse? Eis o problema que enfrentarão ainda que tenham ciência das suas limitações. Poderão comprometer-se com o risco do erro, sabendo que sua tolerância é tão parcial quanto uma medida extrema? Resta saber se será capaz de condenar e de que natureza será a condenação. Pois se o humanismo é o que se prega - e se deve pregar - entre os homens, o que será feito daquele que entre esses não é, assim, tão humano? Terá ele liberdade dos predadores na savana africana, ou a restrição de alguns dos mamíferos num zoológico urbano.

Não é a moral que deve conduzir esses homens, mas menos ainda será a falta dela a lhes trazer liberdade.

sábado, 17 de março de 2012

"...e mais uma vez o suburbano pós-adolescente de quase 30 se aventura num centro cultural da Zona Sul..."

E completa uma cena de quadrinhos: Eu, sentado na mesa de um café, esperando um filme começar, tomando um café e escrevendo no meu bloco manchado de tinta de esferográfica estourada.

Minhas roupas de trabalho de loja de departamento estranham o entorno. Eu? já nem tanto. Os outros talvez. Mas quem não me estranha?

Como sempre, assim que cheguei no tal "complexo de arte" fui direto a livraria:"Até os livros de bolso tão caros demais aqui, e eu reclamando das bancas..." e Viva os Sebos!

Por entre prateleiras vejo um par de borboletas logo após o fim das pernas de um surrado e justo short jeans feminino. Me posiciono melhor pra ver a obra completa. Além do par de borboletas na parte de trás das coxas, dois piercings nos lábios.

Lésbica. Um pouco ao lado vejo sua amiga. Cabelos vermelhos, tatuagens, piercings, short jens apertados e surrados. Lésbicas. Ou seja lá qual seja a moda sexual de adolescentes esquisitas da Zona Sul.

"Não existe mulher virgem tatuada".

A máxima que ouvi algumas vezes de um amigo veio à minha mente. Com certeza aquelas borboletas recebem muito mais lambidas femininas que minha pica. O que não é grande coisa: a lista de coisas que recebem mais lambidas que minha pica é infinita.

Uso meu olhar mais sensual, aquele que diz sem palavras: - Te estupro, depois arranco tua pele faço uma buceta artificial e vou fuder todo dia, mesmo depois que apodrecer.

Não funciona.

Essas coisas só dão certo nos contos do Bukowski.

Sento.

Peço um expresso.

Tento ler.

Bukowski.

Continuo pensando nas meninas lésbicas.

Peço outro expresso.

Fecha o ciclo na cena inicial dessa merda.

Tomara que o filme seja bom, já coloquei 9 reais na conta da familia Moreira Salles.
Filhos da Puta.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Boa praça é praça pública! - Dizia ele.

Certa vez conheci um senhor, bastante respeitável, que atendia pela alcunha de Nogueira. Grande Nogueira! Era assim que eu o cumprimentava nas vezes que ele chegava ao banco da praça onde eu me recostava dia após dia, pois não tinha nada mais o que fazer.

O senhor Nogueira era um homem bastante sério, mas, acima de tudo, era um homem sensato ao extremo. Tão sensato era que eu não pude recusar a concórdia quando ele proferiu numa manhã nebulosa, a sua teoria pragmática sobre a sua sociedade de justiça. Começava assim seu discurso:

- Meu Caro Antunes! Temos que reduzir a sociedade apenas ao necessário, o básico do básico por assim dizer! Falava ele gesticulando grosseiramente como se mo quisesse impor a argumentação a força. Veja só, Antunes! Quantos bares a nossa volta, vendendo salgados e sucos que de tão parecidos não seria possível precisar a procedência se eu vos trouxesse aqui. E pra que tudo isso? Hã?! Por uma variação mínima de preço e de localização, por uma simples questão de mercado. Ande lá! Ao final do dia, são toneladas e toneladas de salgados jogados fora porque a relação de demanda e oferta não pode coincidir. Há sempre o excedente ou a recessão! E não bastasse isso, tem-se essa maldita exigência de alcançar níveis cada vez maiores de oferta e também demanda. É tudo um grande absurdo. -

Eu, do baixo de uma ingenuidade que não me permitiria prever o sopetão da resposta daquele nobre parlamentar, perguntei: - Escuta aqui Nogueira, o que exatamente você está sugerindo?! Que se extinguissem os bares? E onde esse povo todo iria comer os seus salgados engordurados e os turvos sucos que ali se serve?! Acho exagero seu, esse número de tonelada dado ao desperdício que se tem ao fim do dia. Afinal, são apenas alguns bares, seis ou sete, não mais do que oito certamente.

Então, Nogueira arregalou os olhos e eu pude prever a algaravia que me atropelaria por aquele canal. Ele olhou pro céu abrindo os braços como se perguntasse a Deus de onde vinha tamanha estupidez e olhando novamente na altura de meus olhos inseguros, disse-me: - Donde tirastes tamanha estapafúrdia meu jovem? Pensas assim pois tens os olhos fechados para as macro dimensões dessa enorme cadeia a que chamamos sociedade. Temos, por certo, apenas sete ou oito desses bares por aqui, mas ao final do próximo quarteirão somam-se vinte, e mais outro quarteirão quarenta, logo seria possível encher a Lagoa Rodrigo de Freitas apenas com um tipo desses salgados que sobram ao fim do expediente. Que seja um "joelho", digamos, seria uma enorme piscina de massa, queijo e presunto, e a tal tonelada que eu havia cantado te pareceria mingua de um pobre sovina comparada a isso. E quanto a proposta de extinção dos bares, não era exatamente isso que eu tinha em mente. É um fato que as pessoas precisam comer, mas que comam a mesma coisa, no mesmo lugar, e pelos mesmos preços. Ora, o que é bom o bastante para o estômago de um pobre coitado, deve ser bom o bastante para as entranhas de um executivo engravatado. Ou não somos mesmo feitos da mesma matéria? Bastava, então, que existisse por essas bandas um único bar. Melhor, que fosse o tipo do lugar onde se come e bebe, e fosse apenas uma pequena variedade de comidas e bebidas, respeitando assim as variantes alérgicas dos organismos a que se queiram dirigir. Chamar-lho-íamos refeitório, e vá lá! -

Ouvia-o admirado. Quanta eloqüência ele demolhava por entre os pontos e as vírgulas; era, sem dúvida, um orador de boca parruda. Tinha até mesmo a minúcia de salvaguardar os alérgicos em seu projeto. Havia-me, ainda, detalhado seus calculados sistemas de organização responsáveis pelo mínimo de desperdício e o máximo de eficiência. Um pragmatismo admirável para um senhor que trazia sobre o torso um "vistoso" terno que dava, à guisa de um par exagerado de ombreiras, um aspecto um tanto patético a um homem que dizia trazer a próspera solução para um mundo melhor. Mas não um mundo ideal, veja bem! Ele ratificava sempre que podia sua descrença nos modos utópicos que por outras bandas se impregnavam de um discurso batido e ultrapassado sobre mercado livre ou mesmo uma declaração acintosamente cínica sobre as liberdades de escolha em um socialismo como aquele. Sabia dos estorvos de uma sociedade sem tantas variedades, que talvez não fosse possível por lá ouvir Hermeto Pascoal enquanto comesse uma boa rosquinha sabor chocolate, mas que se substituísse a rosquinha por cream cracker e o Hermeto Pascoal desse lugar a uma velha senhora tocando minuetos de Bach ao violino na praça, o que não se poderia admitir era o desperdício e a fome - tudo menos isso.

A sua metodologia não era a torto e a direito como diziam as línguas mais ásperas naquela praça pública. Tinha o encanto particular dos detalhes mais diligentes de sabedoria econômica e social. E resumia-se numa simples assertiva: "Temos que reduzir a sociedade apenas ao necessário, o básico do básico por assim dizer!"

Que belo praça teríamos no comando se o elegêssemos presidente da república.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Um breve Romance chamado Poema

Sua mão corria pelo papel, enquanto a cabeça vagueava por algum estranho mundo (A bem da verdade, não havia ali papel, Mas era o mesmo mundo possível entre um movimento primitivo de lápis e o percutir barulhento do teclado de que dispunha).

Essa alma que sibila noturna
é a mesma que de dia se cala
pois no afã a poesia é inoportuna
tanto quanto no silêncio gala

"Doce sonoridade essa que me toca. Doce é a semântica confusa dessa arte de arautos, dessa prosa em métrica. Doce a poesia me descreve e descreve-me os sentimentos como nem o mais naturalista. Doce é o doce dessa tese." - Pensava ele. Pensava alto, pois gostava de ouvir seus próprios pensamentos retornados sonoramente das paredes que o cercava. E continuava a escrever, aos poucos, pois lançava cada verso como impusesse ao mundo um grande fardo e, ao mesmo tempo, o salvasse a cada rima.

Conto as palavras que conto
numerosas como no altar as velas
Não apenas as do feito, as do pronto
conto-as todas, cada uma delas

E ele realmente as contava. Não que tivesse algum apego particular a uma métrica severamente inútil, mas porque se permitia "criar" o próprio processo. Considerava os versos e as sílabas cortadas como considerasse os filhos mortos em guerra. E os pensamentos que passavam ao largo eram como abortos, chorados a cada partida, pois não os podia salvar. Não a todos.

E se essa arte pulcra engana a vista
é pelo que declara e não pelo que descreve
pois antes que o leitor cansado possa e desista
ela, a que evita e comede, é - enfim - quem mais se atreve

Segurou os olhos com minúcia exagerada naquela ultima sentença - a que acabara de escrever. Havia-a lido em voz alta e não parecia tão extensa quanto fazia saltar naquela tela que enfrentava agora, diante de si, repleta das palavras. Contou-as, novamente, as do último verso e constatou enfastiado aquele excesso. "Muitas palavras! Isso não deve estar certo. Exacto. Perfeito. Não deve estar! Recto. Conciso. Preciso. Não está, certamente não está!" Repetia-se ele, pois não tinha para com a autocrítica em pensamento a mesma temperança dos versos que esculpia no branco da folha. Refez-se do influxo genioso de artista que era e voltou a tempo da sintaxe decisiva.

...antes que o leitor cansado possa e desista...

E, novamente, vinha-lhe a cabeça aquela tese desmedida que antes se formara no enredo. "'ela, a que evita e comede, é - enfim...' Enfim?! Não deve existir palavra mais sem propósito que essa! Ora, 'a que evita e comede'...mas que graça!" Ria-se de uma ironia que ali se fazia em relevo, não obstante o riso fosse, em verdade, o lamento amargurado daquele que incompreendia a própria obra. Percebeu que o termo "enfim" e a passagem "a que evita e comede" não poderiam coexistir naquela peça sob a mácula de tornar-se o próprio poema insuportável para ele mesmo (e quem há de negar que os poetas escrevem para si e não para o mundo? Que são vítimas do claustro da própria personalidade e não o quinhão envaidecido de uma academia de letras?).

Reescreveu mais uma vez, e outra, e mais uma. E entre os cortes e as voltas, entre substituições e enxertos percebeu que não poderia arrancar dali o "enfim" sem que isso lhe custasse todo o amor que trazia pelo texto, pois era do "enfim" que sentiria mais falta, se lho ordenasse sumir. Também a passagem que o contradizia não poderia afastar-se, já que era - com o acento caprichoso de uma pausa (entre vírgulas) - o predicado enunciado de toda a questão, de todo o poema.

Pois, dessa razão destilou um novo sentido e, sem mudar a extensão precisa de seu trajeto, que era espaço antes de ser edifício, que era lacuna antes de ser coluna, retraçou - palavra a palavra - o mais belo e coeso trabalho que já havia escrito e que, assim, terminara:

...antes que o leitor cansado possa e desista
ela, a que evita e excede, é - enfim - quem mais se atreve

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A fístula

Havia um fantasma rondando sua cabeça. Dizia-lhe o que escrever, como escrever e escrevia, ele mesmo o fantasma, assumindo os dedos e os punhos do senhor ao seu alcance. Assim, costumava descrever ele suas crises de ansiedade que eram frequentemente seguidas de alguma repetição sem sentido apenas porque um homem assim possuído demanda ocupação menos ofensiva que seus próprios pensamentos.

A mínima sugestão de que alguma verdade exalava de suas palavras dava-lhe conforto maior ao abdômen, enquanto as pernas convulsas se rebatiam numa velocidade cada vez menor, conforme a calma se restabelecia findo mais um parágrafo a espera do próximo espasmo, que resultaria em outra descrição aparentemente inútil de sua condição doentia.

Era, no entanto, um fremir intermitente na boca do estômago que lhe parecia roubar de si seu comando. Aquela sensação indeterminada, cuja manifestação eminentemente física o faria contestar qualquer diagnóstico que lhe desse como origem um pensamento, o fazia perder o direito sobre aquelas palavras as quais ele tentava, inutilmente, dar o sentido de uma história. Imaginava, sempre frustrado por um condicionamento particular de sua doença, dar início a uma narrativa concisa onde todo aquele vigor nascido das contrações musculares e de distúrbios nervosos tomariam lugar em uma história cheia de vida e pulsante.

Pulsavam, em todo caso, apenas os dedos diante das teclas.

A frágil existência de um corpo, esse que se deixava evidente nas indeterminações de sua vontade, não era suficiente para que aqueles pensamentos que lhe assaltavam em imagens e vozes tivessem forma de discurso ou expressassem mais do que os devaneios de uma ansiedade transbordante e sem centro. Podia apenas impressionar-se com uma capacidade absolutamente inconsciente de utilizar a linguagem de forma minimamente inteligível, mas logo depois a impressão lhe fugia e precisava ele se perguntar se fazia aquilo algum sentido. Especulava a atenção de um leitor tão doente quanto ele mesmo, que reconheceria naqueles termos sua própria doença e, então, sentia-se inundado por uma vaidade lasciva que o dilacerava as entranhas por meio de um julgamento impróprio: Deveria mesmo um homem naquele estado ocupar-se com os pensamentos de um possível leitor?

Após mais um parágrafo, olhava ao relógio e percebia que o tempo não lhe estava a favor. O sono, a calma, ou qualquer condição que o pudesse ausentar daquele movimento quase ininterrupto das vísceras, dos ossos e de tudo mais que tivesse lugar dentro do corpo, não estavam lá. A história prometida, onde um provável personagem se fizesse de motivações cabíveis em uma ação que justificasse qualquer atenção de um leitor qualquer, muito menos.

As vezes tinha a impressão de que as palavras que fugiam aos dedos irriquietos das mãos poderiam também vir dos dedos dos pés, que se mexiam na mesma proporção e velocidade. E nesse momento percebia que a doença se manifestava em palavras, repercutiam aqueles espasmos como uma reação cutânea que tem lugar num tecido infectado. As palavras eram o próprio pus que o corpo expelia conforme a ansiedade se debatia com aqueles membros sem dono, órfãos de um comando mais digno ou um comando qualquer.

Razão é placebo; homeopatia leviana que se esvai na mesma proporção que o adocicado que a acompanha no paladar.

O coitado seguiria perdendo o controle das suas ações mesmo quando os dedos largassem a faina obcecada dos períodos e tempos verbais, e a ansiedade se refletiria em alguma outra atividade de objetivo oculto. Faria a barba dezenas de vezes, até que pequenos cortes evidenciassem o absurdo e a destemperança que o levariam em seguida até o chuveiro, e depois mais dezoito vezes quando findaria também o terceiro e último sabonete a disposição; devoraria tudo quanto fosse comestível na despensa; cortando as unhas dos pés e das mãos se sentiria pequeno porquanto apenas vinte dedos se fizessem a disposição: eles pareciam tão mais numerosos diante das teclas – pensava ele; contaria todos os azulejos da cozinha, do banheiro e depois da área de serviço e, inutilmente, se faria perder nesses números que esqueceria logo em seguida conforme esquecia também... Pois quando o esperado sono finalmente o alcançasse ele já estaria tão longe daqui que nenhuma palavra se poderia fazer ecoar - senão o silêncio.

sábado, 14 de janeiro de 2012

O herói de papel

Aquele era Bruce Wayne de frente para sua escrivaninha excessivamente ornada no melhor estilo Luis XV, e é de se imaginar que tenha pertencido ao próprio, uma vez que o atual dono, homem cuja fortuna só não era maior que a vaidade, não teria razão nenhuma para tê-la – a escrivaninha – não fosse de fato uma peça rara e de valor histórico.

Acima da “pequena mesa” um computador reluzia em contraste evidente com a antiguidade que o suportava e se mantinha ao alcance da vista do homem, que lia com atenção modesta as páginas policiais do principal jornal de Gotham quando Alfred, seu mordomo e conselheiro, bateu a porta delicadamente três vezes. Bruce fez dizer que entrasse e tão logo o senhor alcançou com a perna direita o piso do aposento, perguntou-lhe o patrão o que lhe queria dizer ou mostrar. Nesse instante, o mordomo tirou do bolso da calça um pequeníssimo pendrive preto, que combinava propositadamente com seu uniforme de serviço, encaixou-o no computador e de lá extraiu um arquivo de extensão .BTE (BatText Editor), isso porque esse figurão das indústrias Wayne era demasiadamente orgulhoso de sua influência e poder para dispor de uma ferramenta popular como o Microsoft Office. Aliás, fazia alguns anos que uma disputa particular se acirrava entre a Microsoft e as Indústrias Wayne, que brigavam pela hegemonia do mercado de softwares da cidade de Gotham.

Bom, abrindo os arquivos, Wayne se deparou com dois links (http://www.elephantiase.blogspot.com/2009/09/saga-do-homem-morcego-no-1.html e http://www.elephantiase.blogspot.com/2011/05/saga-do-homem-morcego-no-2.html ) que quando explorados levaram ele ao pouco conhecido blog de um jovem escritor brasileiro. Com alguma dificuldade o milionário venceu o português que se apresentava nos textos, mas identificando logo a primeira vista os títulos, que pareciam indicar que o enredo ali tinha como razão ele mesmo, o multimilionário que à noite, em nome da justiça (de alguma justiça), se travestia de homem-morcego. Seguindo a leitura, uma primeira risada escapou-lhe por entre os dentes. Não fora, todavia, um riso de graça. Um ecoar um tanto macabro, em verdade, dava aquela risada ares de uma legítima reprovação, mas também porque o pé direito alto, como era o da mansão de Bruce Wayne, favorecia aquela sonoridade em particular.

O texto, afinal, dizia desse mesmo Batman, cujos olhos agora ausentes da moldura de uma máscara enfrentavam aquelas inventivas palavras a respeito de um super-herói burguês mal contextualizado nos arredores da Central do Brasil. Teria ignorado completamente a menção ao lugar se sua memória não houvesse encontrado a lembrança de filme homônimo, que alguns anos antes havia sido recomendado a ele por Alfred, esse sim um profundo conhecedor da cultura brasileira, do que se justifica, aliás, que tais textos tenham chegado ao conhecimento do oportuno mordomo.Finda a leitura, delegou ao seu prestigiado funcionário: “Prepare minha Bat-Nave!”

Ora, o sagacíssimo autor havia sugerido, a certa altura do texto, que os maiores vilões (maiores mesmo que seu arqui-inimigo Pingüim) eram aqueles que circulavam pelos arredores da Cinelândia. Não querendo crer nisso e na intenção de provar que aqueles eram criminosos ordinários, fez dirigir-se para lá o poderoso Batman, afim de derrotar esses oponentes em vista - apenas utilizando seus braços e pernas. Julgou, com efeito, que não seriam necessárias nem ao menos as ferramentas de seu famoso cinto de utilidades, mas levou-o, assim mesmo, posto que além das estimadíssimas ferramentas que se dispunham naquele cinto, tinha ele a função, comum a quase todos os cintos, de segurar-lhe as calças. E como todo bom super-herói sabia que nenhum outro meio digno há para manter no homem (Super-homem que seja!) as calças no lugar onde devem ficar, ainda quando as cuecas lhe forram por cima. Lembrou-se, então, novamente de seu eterno adversário Pingüim que recorria ao expediente de suspensórios para manter-lhe as vestes junto à cintura, e pensou: “Tais suspensórios só não lhe são a maior perversão porque o delinqüente carrega e manuseia um guarda-chuvas mesmo quando o clima árido anuncia completa impossibilidade de precipitação.”

Vestido à caráter, chegou Batman ao local. Desceu da nave e andou até o centro da praça na Cinelândia e esperou que os inimigos se anunciassem com seus caracteres apodrecidos e suas vis intenções. Não precisou esperar muito, pois logo apareceram três “senhores” mal encarados e não fizeram nem mesmo menção a anúncio formal de seus nomes e seus talentos, partiram sem piedade pra cima do homem-morcego que foi brutalmente espancado; roubaram-lhe a carteira (que dessa vez viera no bolso junto com as chaves da Bat-Nave) e rasgaram-lhe todo o uniforme. Demorou a entender como anti-heróis como aqueles, sem elaborada alcunha, frases mirabolantes acompanhando seus ágeis ataques, poderes ou armas de digno refinamento conseguiram-lhe vencer em tão grosseira investida. E como ele, o caro leitor deve agora se estar espantado não apenas com o resultado da peleja, mas, sobretudo, com a facilidade da resolução.

Eis, pois, a razão das coisas conforme esse honestíssimo autor lhos anuncia: aquele não era Batman, e por baixo daquelas vestes o homem não se chamava Bruce, nem tinha Wayne por sobrenome. Atendia pela alcunha de Dudu na agência bancária em que trabalhava e se, naquele instante, vestia-se conforme um Batman no centro de uma Cinelândia escura e quase deserta era porque comprara na semana anterior a fantasia e fora levado até ali por um táxi desde o Rio Comprido onde morava, e quando o próprio taxista se houve espantado com o traje de seu passageiro, teve por bom e inocente julgamento concluído que o homem se encaminhava para nenhum lugar que não uma festa a fantasia. Mas a verdade é que o bancário, elegendo-se como homem da justiça e tomado por surto que o fizera identificar-se com o temido e autoritário Batman, tinha em mente razão mais nobre, ainda que cômica ou patética, que aquela previsível de uma mera festa a fantasia.

E embora dois de seus agressores prescindissem de todas aquelas qualidades que fazem dos vilões homens de aparência tão singular, o terceiro deles matinha para com os preceitos do “bom vilanismo” o hábito indumentário, pois aquele homem usava uniforme. Irônico é que o uniforme fosse do Sport Club Corinthians, também cantado por seus torcedores como “Coringão”, que faria lembrar a um verdadeiro Batman da alcunha de seu célebre oponente nos desenhos ou histórias em quadrinho. Mas menos que a derrota do bem sob a astúcia do mal, o que incomodava ao homem era a ocasião de, em pleno Rio de Janeiro, um meliante qualquer circular como um local com a camisa de um time paulista. Daí, encerrando quaisquer dúvidas sobre a procedência desse homem-morcego em questão. Das semelhanças que pudéssemos ver nele para além da vestimenta trajada (agora em frangalhos) fica, na melhor das hipóteses, sua predileção pela noite que o fazia, quando não trabalhasse cedo na manhã seguinte, ficar até tarde acordado.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Chega de bandido pra prender (Eu tenho uma idéia!)

O garoto de óculos carrega sua câmera enquanto procura um ângulo privilegiado para fotografar o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, na Cinelândia. A pele excessivamente branca e o olhar de estranhamento para com seu entorno acusam a procedência do menino: trata-se de um estrangeiro. Com todas essas características que o distinguem da maior parte das pessoas que circulam a sua volta, o rapaz parece um alvo em destaque para um marginal oportunista que o observa há uns 6 ou 7 metros de distância, sentado num banco quase em frente a um restaurante sobre o qual se estende um grande prédio amarelo – o “amarelinho”.

O garoto, apesar da tenra juventude estampada na pele e nas roupas, não é tão jovem quanto se supõe e os auspícios de uma percepção que se molda sobre seus sentidos, bastante acima da média, parece indicar a ele que o marginal o irá abordar em alguns segundos. Não há nada a temer - pensa o rapaz. Na mão uma câmera profissional que se apoia sobre o pescoço com o artifício de uma fita, talvez seu maior patrimônio naquele contexto; na carteira, algumas dezenas de dólares se misturam a três notas de 50 reais, dinheiro pouco importante para ele que vê a vida muito além dos luxos e prazeres proporcionados pelo dinheiro; e no bolso, bem ao lado da carteira, um passaporte onde se atesta seu mais distintivo caractere – seu nome. Parker, conforme ele o apresentou mais cedo ao recepcionista do hotel onde está hospedado em Copacabana, - Peter Parker!

Ora, já quando o marginal o alcançava com olhar imperturbável há uns 3 metros de distância, se dirigindo para uma abordagem seca e intimidatória, o jovem com a câmera antecipava cada passo seu e considerava 72 maneiras distintas de imobilizar o algoz, cada qual acompanhada de uma frase jocosa ou uma tirada bem humorada, marca registrada dessa virtuosa criatura que vivia sob a identidade de um jovem fotógrafo, embora nem tão jovem e bem menos virtuoso no emprego que oficiava com máquina que na chancela de um herói popular e de humor característico que era quando do uso de uniforme e máscara.

- O uniforme e a máscara! - Pensou consigo contrariado. Não os havia trazido e qualquer manobra que tivesse em combate de seu iminente inimigo o faria sucumbir a uma exposição imprópria e indesejada. O marginal se parou ao seu lado e mandou essa: - Ôh gringo! Passa a carteira e os dólar! – e como seu interlocutor houvesse demorado em menção a entregar-lhe, repetiu com ares de bandoleiro poliglota: - Vamo logo senão te furo todo! Give the wallet playboy!

Sentia-se agora impotente mesmo sabendo-se capaz de levantar aquele criminoso com uma das mãos, pular sobre sua cabeça e puxar-lhe por trás a cueca (fazendo dela uma algema ou uma camisa-de-força) ou imobilizá-lo quase instantaneamente com uma de suas teias projetadas a partir dos punhos apenas com um posicionar estratégico dos dedos e da palma. Como o bandido não lho requisitasse a câmera, e tomando por medida a insignificância do dinheiro que recheava o objeto em demanda, puxou do bolso a carteira e entregou àquele sujeito mal vestido, sujo e com a barba por fazer já há pelo menos 6 meses. Ali não se demorou o meliante que, ignorando a câmera que agora pendia do pescoço do gringo, partiu em retirada numa passada calma e irreverente (a “ginga brasileira” como lhe diria mais tarde um policial para o qual relatasse a ocorrência nosso herói reticente).

Os 15 minutos que se seguiram àquele roubo foram os piores da vida recente de Peter Parker, que se sentindo impossibilitado de exercer seus domínios e talentos na prática da justiça, conforme entendia ele assegurando a necessidade de restituir à vítima os bens perdidos e entregar os infratores à punição e ao trato policial, teve vontade de correr atrás do ladrão e espancá-lo até que suas mãos brancas sem uniforme cobrissem-se do vermelho do sangue do homem, como um tecido vivo que se lhe moldasse na forma exata das mãos. Entretanto, no instante em que esse pensamento lhe tomou em assalto, logo lhe veio à cabeça a imagem de Venom e Carnifícinia (dois antagonistas seus que tinham por traço justamente essa flexibilidade como de uma vestimenta de lycra ou helanca que tomasse com perfeição a forma do corpo fosse este o de um esbelto guri ou de um mórbido obeso a segurar um hambúrguer em cada uma das mãos) e seu ódio logo deu lugar a um sentimento mais brando, resignado. Tomou em orientação relativista os problemas sociais que afligem aquele país e, por certo, justificavam violência daquela natureza.

Mas o consolo maior e, talvez, o único pensamento que lhe possibilitou abandonar aquele rancor e a frustração que pouco antes se fizera conforme neblina sobre o seu próprio caráter foi a idéia de que, se Peter Parker se dera ao despojamento de uma ou duas semanas ausente das funções e da rotina que o submetiam a empenho e preocupação constantes em sua cidade de origem, seria impendente e indispensável que também o homem-aranha tirasse alguns dias de férias.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

O beijo

- Você é a garota mais bonita que eu já conheci – o rapaz disse encabulado, já que a timidez que o fazia comprimir os ombros estava em pé de igualdade para com o desejo que o impelia a fala. A menina sorriu e hesitou responder. Ao mesmo tempo que via como fraqueza a insegurança do rapaz, sentia o lisonjeiro encanto porque houvesse vindo tão cândida criatura lhe dizer aquilo. Timidamente também ela respondeu – Obrigada. Note-se, todavia, que a sua timidez era charme e nada mais.

O rapaz, do outro lado, inflou-se de uma segurança súbita como um botão de rosas que subitamente desabrocha diante das pedras, da terra e de algumas árvores dessas que conservam com o mundo uma percepção estendida pelas décadas e séculos, e levou suas mãos até as mãos da menina, tomando-as aos olhos e, retomando o olhar novamente ao rosto dela, disse-lhe: - Queria poder olhar pra você todo dia, o tempo todo. – a pausa que fez antes de continuar não fez senão dar eco e profundidade às palavras que se iriam seguir – teu sorriso me faz lembrar como podem vir mais belas coisas de uma boca do que palavras.

Não é que a poesia seja para as mulheres, especialmente para as mais jovens como aquela, afrodisíaco mais poderoso que o corpo e os hormônios, mas a vaidade que modula o comportamento feminino mais filistino pede que do outro lado também haja mais composição no trato que o expediente de um beijo tomado à força ou em surpresa. E como os olhos dela agora já eram todos para os dele, o sorriso – que um segundo antes havia sido a tônica e a graça de um encômio insuspeito – dissolveu-se num comprimir de lábios que pedia ao rapaz que avançasse e tomasse em ação a razão de toda aquela empatia. Conforme seu rosto lentamente se aproximava, também o dela fez menção de ir-lhe ao encontro, quando escaparam da boca dele, orgulhoso e impaciente por narrar o momento, as seguintes palavras: “É agora ou nunca”.

No mesmo instante que as palavras vieram ao ar, a menina – de acordo com uma simetria irrepreensível que dava proporção cabível ao demérito do último verso – estendeu às mãos ao peito do garoto interrompendo-lhe o trajeto e inquiriu: - O que você disse? – mas como não fosse necessária a resposta, uma vez que os ouvidos que ouviram com tamanha estupefação aquela sentença eram os mesmos e atenciosos que antes se haviam deleitado com os gracejos e os gabos, declarou sua indignação balançando a cabeça e repetindo duas ou três vezes procurando a entonação adequada – Eu não acredito!

Pois, antes que o menino se pudesse explicar, corrigir ou manobrar sua conduta diante daquele insucesso tão iminente, deu-lhe ela as costas e apenas mais uma palavra – Nunca!

Na poesia, como na prosa, segue que cada palavra – por mais inocente que seja - submete a antecedente; e a frase que se lê ou se ouve num instante deixa para trás no tempo e na memória aquela que lhe precede. Como um cão que farejasse a procura de determinado animal, sentiria seu cheiro mais evidente e presente quanto mais recente fosse ali a passagem do bicho, assim é que um poeta deve encarar seu leitor. Para o caso do cão ser aquele em posse de pena e papel, cumpre que o rastro seja o cheiro que exala do seu próprio rabo e nada mais.