segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O Templo de Ártemis



O dia preciso, quando supostamente se deu a cena descrita, não é aqui cabível pela simples razão da improbidade da memória daquele que guardou a história na cabeça até o momento oportuno de colocá-la no plano. Fato é que se deu entre o primeiro e o último dia de agosto do ano corrente. Embora não sendo fato – não a data ou ainda a história conforme os detalhes que a delineiam – nem por isso deixaria de ter lugar entre os autos das narrativas deste que se impõem como autor, e que se pensa capaz de enxergar qualquer imagem que dentro de si se faça constar.

De todo modo, independentemente de qualquer caráter criativo que se faça impendente nesta narrativa, é dado pela própria geografia do espaço em referência que, qualquer um que chegue através da Rua da Lapa, no instante em que enfrenta o local onde essa se cruza com a Joaquim Silva (lá numa esquina em que se faz estabelecer de um lado uma loja de tatuagens), percebe o passante que o corredor formado pelas edificações dos dois lados da rua dá lugar a uma suspeita clareira, assim cabida pela presença de um largo estacionamento, que se vislumbrado depois da meia noite de um dia de semana ordinário estará, provavelmente, vazio, fazendo assim do lugar uma espécie de grande sala dentro da qual o olhar deste que chega se fará rapidamente espalhar.

Oportuno será, com efeito, que a história deste ponto se inicie. E se iniciará conquanto o assistente aviste a senhora que caminha sobre a mesma calçada que ele, alguns metros a adiante, tendo a sua frente e sob o empunho das mãos um carrinho de bebê distinto pela sujeira e o amarrotamento impressos nele pelo tempo e uso, mas principalmente pela ausência da figura que o qualificaria a função, o bebê. Iluminada pela luz amarela vinda de um poste bem acima de si, a senhora sustenta a cabeça baixa enquanto vasculha o plano sob seus pés, logo quando avista uma lata de tinta vazia, larga por um breve instante o carrinho e se direciona ao objeto que se faz impressionar na sua atenção. Daqui, a justificativa para haver-se qualificado a lata enquanto vazia, uma vez que foi tomada pelas mãos da senhora com o cuidado e a delicadeza que se dedica não somente a uma peça valiosa, mas a uma peça que não despende do manuseador a força bruta que se emprega em objeto de peso como seria no caso de uma lata cheia.

É preciso, de todo modo, ir além e compreender, para lá da mecânica e da física implícitas ao gesto da mulher, o ofício e a demanda a que se entregava aquela quando da sonolência que sua feição exalava, viu-se dar lugar ao expressivo de um semblante intenso e preocupado, como se, ao mesmo tempo em que jogasse os olhos sobre a lata, fizesse da lata descoberta quando antes não era senão em potência; inábil feto a espreita sob o útero urbano que era ali a rua, a calçada e todo concreto que rodeava o objeto em questão. Há que se entender que a lata ganhava vida tal como a senhora se fazia descobrir na razão da sua própria, exercendo ali a função da parteira na medida mesma em que deixava de ser apenas uma figura mal tratada – dada a miserabilidade da indumentária, mas também o inoportuno do lugar e da hora em que a velha se punha no comando de um carrinho de bebê desocupado – para valer-se como aquela que trouxe a luz o pobre indefeso cuja mãe abanou no próprio ventre inerte na indecisa entre criatura e descarte em que se tinha aquele que agora a senhora levava do chão ao carrinho, posicionando com zelo e ternura a pouco útil lata de tinta tal como se ajeitasse ali um verdadeiro rebento.

E precisou o passante, conforme deixasse a senhora para trás, girar o pescoço e mantê-lo torcido com o queixo alinhado ao ombro, para testemunhar essa incumbência maiêutica que assaltou a senhora no curto espaço de alguns poucos minutos, entre a entrada na altura da Joaquim Silva e a saída já quase na curva onde a Rua da Lapa se renomeia como Rua da Glória, lá onde o referido perderia a visão por conta dos prédios que se erguiam ao redor do lugar, fazendo a clareira dissolver-se novamente em um corredor temeroso e mal iluminado.