terça-feira, 19 de abril de 2011

As novas ondas da estética

Sentava-me todos os dias em uma cadeira que permanecia frontal ao aparelho de microondas enquanto a comida girava e girava. Se é dito que “a arte imita a vida” também aquela imagem que me chegava aos olhos, atravessando uma frágil porta translúcida, me parecia arte àquela altura. Se uma caixinha barulhenta me dispunha as imagens repetidas de um prato em movimento, fazia-me lembrar a televisão que em casa tinha. A novela que praticava, no entanto, não pertencia aquele restrito universo dentro do aparelho; versava, mormente, sobre uma fome primitiva que me fazia esquecer cada segundo passado e contabilizado pelo marcador digital, criando assim os aspectos encadeados de uma ficção muito bem definida. Havia, ali, um protagonista de direito: a comida; um argumento que lhe era externo: minha fome; e um enredo que se deslanchava sem maiores conturbações (a não ser pela ansiedade ciosa que minha urgência mastigava), a saber que cada partícula daquele digestivo se esquentava para suprir uma demanda absolutamente irracional de meu critério alimentar. Um belo espetáculo surgia daquela alegoria giratória e iluminada. O som rangente que indicava a ação das microondas sobre o alimento (ainda que não houvesse ali nenhuma ligação direta entre um e outro e o barulho viesse de algum mecânico processo necessário à produção das ondas mas cuja essência nada tinha a ver com o ser daquelas que davam nome ao aparelho, eu assim atribuía-lhes correspondência, posto que apenas as ondas e o alimento faziam-se personagens) era descriminado com minúcia pelo relógio que se trazia acima e a parte daquela ópera eletrônica.

Questionei-me quando faltavam ainda 30 segundos para o final do último ato: o alimento, conforme a passividade de sua conduta (e mesmo que girasse fazia-o por um capricho daquele ambiente torturante para um ser vivo de qualquer espécie), representava ali não o papel do herói, mas o da vítima. E as nobres ondas, que castigavam com um calor muito próprio e diferente do fogo das inquisições habituais, era o carrasco assumido Mas não o vilão odiado, visto que era uma extensão afectada de minha fome que lhe pedia o tratamento dado. Devi julgar-me um sádico quando o meu espetáculo pedia a curra de um protagonista indefeso, mas eu não pude. Pois carecia àquela altura de certa moralidade maniqueísta necessária ao julgamento de tais pudores. Achei belíssima então aquela imagem – a do profeta que ardia por dentro e por fora à maneira de um inquisidor invisível. Entendi naquele momento porque o prato girava e porque devia girar; fazia-o para mostrar-me cada pedaço exposto e como choravam os grãos, a carne e os vegetais. Algum diretor de arte sagacíssimo havia percebido, antes de qualquer engenheiro a que competia, a necessidade de uma bandeja giratória. Assim como um Canova, dando-se conta da imobilidade de sua figura esculpida, fê-la de forma a exibi-la aos olhos frontais de um observador estacionado em três posições distintas, dando a essa unidade de perfeição a insígnia redundante de “As três graças”. Mas diferentemente dessa onde a imagem parecia destacada do tempo, ociosa e impecavelmente imóvel, a obra que eu deleitava se desenrolava nos segundos contados de uma minha natureza predatória e salivante. Eu consumia com todo fervor aquela ansiedade, com a mesma violência que iria consumir depois uma refeição já sem tanta arte.

E como num final apoteótico o aparelho gritara. Gritara como estivesse em pleno exercício de um gozo fulminante, apenas para anunciar um fim premeditado. Gritara como gritasse o executor enlouquecido que esquarteja a sua vítima já desfalecida dando ao estreito de sua feitura a dimensão exacerbada da arte. E se “a arte imita a vida”, ali também um fac-símile havia-se reproduzido; e imitara-se a vida tão bem, que julguei que era essa – doce como sangue na língua do carnívoro – a própria morte, encarnada e encenada, verdadeira e espetacular, como nenhuma saciedade consegue imitar.

domingo, 3 de abril de 2011

As formas do conteúdo

Saindo do metrô na estação da carioca (quando deverá o leitor ignorar que existem duas saídas possíveis nesta estação, tomando o deslize por oportuno), entrei na rua homônima e me conduzi por ela até uma loja disposta na esquina onde a rua é invadida pela Av. República do Paraguai. Entenda-se “loja” por “espaço físico restrito onde se vende coisas” e a sentença parecerá vaga, quando solicitará o interpretante que eu defina tal espaço sob o lexema “sebo” indicado em unidade cultural definitiva a qual permite um juízo mais propositado aos desígnios do narrador. Sublinhar-se-á, no entanto, que apesar do esforço em conduzir a sentença a um campo semântico em que o leitor possa, sem desvios, concluir com alguma precisão a natureza do lugar a que se empenha o retrato falado, se falha ainda na permissividade do termo que subentende categorias de definição de todo modo imprecisas. O termo “sebo”, pois, se aplica à loja em que o objeto da venda é um livro usado - Ainda que o astuto em posse de um dicionário se apresse em declarar que sabe, com absoluta resolução, o que é um livro, titubeará em elencar em tópicos circunspectos aquilo que na expressão “livro usado” corresponde ao “usado”. Deverá definir, deste modo, que o simples ato de abrir o livro não corresponderá ao termo do uso a que se refere; menos ainda fará sugestão de que o uso, nesse caso, corresponde à leitura, ainda que, se assim fosse, precisaria delinear se o “uso” de ocasião se refere à leitura do livro inteiro ou se se basta apenas a leitura dos dois primeiros parágrafos (ou parágrafos intermediários escolhidos em orientação arbitrária) para determinar tal denominação. Pensará - com alguma argúcia até - que o definitivo do uso se dá pela posição de revenda, ou seja, de que o livro foi uma primeira vez vendido e de que, agora, se dispõe pela segunda (terceira, quarta, etc.) vez à venda. Não conseguirá, entrementes, se posicionar diante de excetos casos em que o livro chegou ali sem a mediação de uma primeira venda ou, até mesmo, àqueles em que ainda sendo a propósito de uma segunda ou terceira vendas, se apresenta o livro em estado de novo, não havendo, por força do uso, perdido o lacre com que saíra da fábrica. Chegará à conclusão, então, de que o definidor do termo é, de fato, o próprio lugar, que estando destinado à venda de livros usados, impõe, sem demérito literário ou desavenças críticas quaisquer, ao livro que ali se apruma o designativo mercadológico próprio do espaço.

Sendo ou não desse modo, entrei: isso porque, a despeito da forma da expressão e de certa indeterminação do conteúdo, parece-me suficiente o verbo com que designei a ação.

A loja, que se dispunha em profundidade por dois estreitos corredores formados na mediação de uma estante central que me alcançava à altura do umbigo, havia adotado um modo de organização peculiar na distribuição dos livros. Quando antes se propunha agregar títulos sob a importância de disciplinas/assuntos, fazia agora uma organização lateral em que certos livros se emparelhavam a partir da especificidade de seus autores. Nota pouco efetiva se se pensar que em comum com seus autores é, em geral, consequente que os livros se ostentem sob a mesma demanda disciplinar. Dito isso, o caro leitor poderá concordar que todos os livros de um mesmo Wittgenstein poderiam dispor-se lado a lado numa prateleira destinada a livros de filosofia. O mesmo, no entanto, não se pode dizer sobre os livros de um bem versado em campos diversos como Umberto Eco. Pois eis a surpresa pela qual fui acometido. Provavelmente porque a loja não dispusesse suficientes volumes para uma prateleira destinada apenas a livros deste autor, foi bem ao lado de “O pêndulo de Foucault” que me encontrei sob a tal surpresa: um livro empenhado em problemas de semiótica e estética em estranha arrecadação numa prateleira a princípio destinada a romances. Surpreendeu-me, em todo caso, mais pela apelação de um contexto (tal qual um ornitorrinco, que de “criatura de Deus” foi rebaixado à “aberração natural” assim que o escopo classificativo das ciências dos homens resolveu trocar a definição empírica pela teleologia ensaiada nos diários de Darwin) que por uma estatística qualquer que me indicasse a provável impossibilidade de encontrá-lo na loja. Em todo caso, tomei-o em mãos e me dirigi ao balcão assim que identifiquei que o preço estava em acordo com uma valoração pessoal minha (que leva em conta não apenas o nome do autor e o estado do livro, como também o tempo em que se cerca uma possível primeira leitura que poderá ocorrer desde a compra efetiva até a chegada em meu destino próximo, determinando assim que esse não será mais um daqueles livros não lidos em minha biblioteca pessoal, salvo que eu já tenha devorado pelo menos um primeiro e, talvez, segundo capítulos). Chegando ao balcão, atende-me um homem atencioso que me toma das mãos com cuidado o livro, enfiando-o em uma sacola. De cabelo e barba rasteiros, também a juventude do homem (que beirava a casa dos 50) contrastava com a imagem que eu tinha em memória do antigo senhorio daquele estabelecimento: quando um senhor arqueado sobre um livro, sentado em um banco no canto da loja, alisava as longas e alvas barbas como que despreocupado com a função que naquela loja o acompanhava e com o tempo que se perdia a cada instante, tempo – ao avesso das páginas – impassível de retrocesso.

Paguei a quantia que me competia e o homem me entregou a sacola com o livro. Antes de me virar, contudo, perguntei:

- Não trabalhava aqui um senhor de idade avançada, com a barba branca descendo ao pescoço de tão comprida?

O homem, antes esculpido em matéria inerte em imagem que não me dizia mais que os excertos de um manual técnico, transformou-se inesperadamente numa narrativa mítica e melancólica em língua que eu desconhecia. Seus olhos encheram-se de lágrimas (ainda que nenhuma tenha, de fato, corrido abaixo) e falou-me:

- Esse era meu pai que faleceu recentemente.

Perguntei, já inoportunamente - como se fizesse parte da história apenas por comigo ter na memória a imagem lúcida do senhor em vida:

- Quando foi?

No que o homem respondeu, em um misto de conformação e culto:

- Fez seis meses semana passada.

A história que se anunciava na emotividade que se desenrolava sob os olhos do homem (que parecia, em alguns segundos, querer descer como uma chuva torrencial na oportunidade do desabafo prosódico com o desconhecido) se velou no silêncio que se seguiu à sua resposta, enquanto eu o encarava esperando por algo mais a ser dito.

Compreendi naquele instante que o diálogo do homem era com outro e suas formas expressivas tinham também natureza diversa. Compreendi, sobre todas as coisas, o que viria extrair mais tarde do livro do qual me fiz proprietário naquele dia: que basta que a forma seja em si, para que seu conteúdo, a rigor, se declare nos contornos e preenchimentos de seus espaços, pouco importando que alguma ciência consiga ou não dar cabo deste que é o significado e nos alcança sob legenda imprecisa; que a expressão não se dá nos intervalos do signo, em cuja divisão feita pelo estudioso se pensa existir algum fundamento maior que a expressão em si, mas no fenômeno indivizivel que ocorre entre o impulso intencionado daquele que expressa e a recepção crédula de um outro que, ausente de preocupações analíticas, lê a mensagem como se fizesse sob um braço extenso da própria percepção; que a reza de um homem às suas deidades não estará, em conteúdo, acessível ao antropólogo, cujo arcabouço teórico, no entanto, será suficiente para o preenchimento e contorno do seu livro e esta sua própria reza; que aquele que escreve pensa, o que pensa existe, o que existe é pensado e, com efeito, escrito pelo outro que lhe dá forma e, portanto, conteúdo; que o livro usado é, sobretudo, um livro e o “sobretudo”, na posição de sincategoremático ou não, pouco importará ao que o usa (salvo nos casos em que o frio se faça "de fato", para além do contingente).