segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Da primeira vez que invejei um cego.

Esperava o ônibus numa das largas calçadas da Central do Brasil. Disposto na direção oposta à que vinham os carros na grande avenida, percebi que me situava na região central de um longo corredor que se formava. De um lado havia os “atentos”. Pessoas que se alinhavam rentes ao meio-fio - com olhares fixos no horizonte, por onde chegariam seus ônibus como que numa aparição maquinal – e se perfilavam à direita do corredor (devo dizer, com o perdão do trocadilho: pessoas direitas). Do outro lado, criaturas mais vagas tomavam forma no semblante impreciso de sua atenção. Esperavam também seus ônibus, certamente, afinal é essa a lógica daquele espaço instituído, o “ponto de ônibus”. Mas das suas expressões empedernidas por fora, pude julgar – a partir de um método especulativo qualquer que me é peculiar – que por dentro faziam-se da embriagues de um pensamento volumoso: “pensavam na vida”.

Eu, que me colocava no meio daquela disposição diligentemente conceituada por mim, vi-me obrigado a conceber que também naquele centro havia um sentido; e se eu me diferenciava – em minha “embriaguês” de pensamento – dos à esquerda, era porque eu, na forma inversa daqueles que pensavam na própria vida, pensava mesmo era na vida dos outros. Afinal, foi nesse eterno diálogo entre um individualismo do "eu" absoluto com a sensibilidade humanista de um olhar de alteridade que o caso que sucedeu se desenrolou. Meus pensamentos foram interrompidos por um homem que caminhava pelo “corredor” há alguns metros à frente. Era cego e quicava seu cajado pelo chão, sistematicamente, à direita e à esquerda, enquanto vinha em minha direção. Contudo, tinha um aspecto viril como poucas vezes antes eu houvera visto em um cego; os braços fortes lembravam os de um estivador, ainda que a delicadeza com que empunhava o cajado desmentisse a altivez do corpo sadio - era mesmo um homem cego. Vinha sem os tradicionais óculos escuros e de olhos abertos - bem abertos - em plena consciência de sua cegueira e nenhuma vergonha daqueles dois inúteis que eram seus olhos. Logo que entendi do que se tratava dei um passo ao lado (à direita), posto que estava na rota de colisão de uma criatura que não me podia ver. Talvez tenha escolhido a direta por uma questão prática: tão logo meu ônibus chegasse, estaria mais próximo e seria menos custoso alcançá-lo. Aliás, pra mim, era essa mesma praticidade que definia os daquela coluna. Mas assim que o homem cego passou por mim (a meio metro de distância, talvez) uma belíssima mulher se colocou entre nós em alta velocidade, fazendo-me dar um passo para trás de sobressalto e esbarrando no cego que não pode prever sua presença repentina e quase se estabaca no chão – a destreza do corpo bem trabalhado, no entanto, foi suficiente para que o homem fincasse no chão o cajado e recuperasse o equilíbrio das pernas. A mulher seguiu dando as costas ao cego e, assim como o homem que quase derrubou, nem tomou conhecimento da cena. Ignorara completamente a deficiência do homem como também o homem ignorava a beleza dela, a mulher. Mais uma vez, dois tipos apareciam na minha concepção de mundo porque eu julgasse todos o tempo todo e não pudesse parar de fazê-lo sem que isso me custasse o sofrimento esculpido em um certo vazio que preenche toda espera: Um introspectivo – o cego -, contido hermeticamente em universo próprio e despreocupado com as ações instantâneas que surtiam segundo após segundo no mundo material (de certa forma, era como os da esquerda, os que pensavam na vida e concediam à espera do ônibus apenas uma atenção secundária que deveria despertar apenas quando o ônibus chegasse afinal). A outra, absolutamente externa a si, deslocava-se da coluna da esquerda à da direita porque seu transporte acabara de ter-se estacionado no ponto. A pressa era o aspecto externo que completava a transição em que se tornava agora, a mulher, um daqueles pragmáticos à direita, que se fixavam com vista única em um objetivo. Coincidências à parte, não poderia defini-la, ali, de outro modo senão por aquela pura exterioridade que declarava sua aparência – beleza física. E era também esse aspecto que fazia tocante a mim aquela criatura.

Falavam por mim, então, os desejos de um “eu” sem fronteiras, que era tudo e queria ser todo o resto; e se martirizava pela distância que se impunha entre o desejo de possuir aquela mulher (e todas as que fossem como ela belas) e a impossibilidade patente de efetuar a posse. Senti-me fraco. Um porque me teve mais apelo aquela volúpia que certo humanismo que me deveria comover com a cegueira e a vulnerabilidade do homem naquele instante. E outro porque, ainda que eu fosse o mais humano dos homens e minha generosidade ultrapassasse o vigor incessante de minha libido, eu jamais teria em mãos os contornos sutis daquela beleza - aprofundada pela superficialidade dos meus imperfeitos instintos - que era a mulher.

Senti o peso daquele desejo e desejei não desejar.

Foi nessa hora que me reportei à indiferença do cego para com a beleza que o havia quase jogado ao chão - como se não houvesse qualquer diferença se o corpo que o tocara fosse o de uma deusa encarnada ou o de um suíno mal adestrado – e foi essa a primeira vez que invejei um cego.