quarta-feira, 23 de junho de 2010

O velho e Omar

Esquentava as mãos sobre o latão na fogueira que se sustentava ao custo de folhas de jornais velhos e dos pedaços de madeira arrancados aos antigos móveis, abandonados bem ali, naquele beco imundo. Permaneci em silêncio até que se aproximou um senhor, cuja branca barba atravessava a linha do pomo-de-adão, dobrando-se ao peito coberto com o grosso tecido de um casaco escuro. Cumprimentou-me com um aceno sutil da cabeça e pôs suas mãos sobre o fogo em compassiva atitude, compartilhando não apenas o calor necessário ao corpo enrijecido pelo frio intenso, como também a desavença com o mundo que mantinha a margem os freqüentadores daquele beco.

- A noite vai ser fria – comentou o senhor dando espaço a um assunto qualquer, como quem admitisse o diálogo antes mesmo da pauta sugesta.

- O dia já está frio – eu retruquei, lógico e agudo.

O velho riu-se, comedidamente, e me perguntou as horas. Puxei a manga do sobretudo, confirmando que já se passavam das 4 da tarde, no que fui imediatamente agradecido por ele, que logo em seguida comentou:

- Nunca te vi por aqui.

- Eu não costumo entrar por esses becos, é que hoje tive uma notícia ruim e resolvi dar uma volta pelo bairro. – respondi certo de que seu comentário implicitava a pergunta qual minhas palavras fizessem saciar.

O senhor permaneceu em silêncio. Mas o silêncio falava por si; tinha os ouvidos abertos e auscultava minha dor com todo coração. Aliás, pedia-me que desabafasse, pois éramos “Irmãos de fogo” e dividíamos juntos o calor, o frio e as dores. Afinal, por baixo de uma barba tão volumosa, devia mesmo haver um espírito nobre e doce, conforme as lendas que nos descrevem esses sábios.

Expus, então, o que me incomodava: - Não existe justiça no mundo?! Não se vestem mais os homens com o mesmo traje. A humanidade que nos devia cobrir deu lugar às fardas e hierarquias da força e da desproporção.

O velho olhou-me nos olhos e consentiu, lacônico: - É... Mundo cão!

Comecei, então, a contar-lhe o caso: - Fui demitido. Sem mais nem menos. Chamaram-me no departamento de recursos humanos e me disseram que os meus serviços não eram mais necessários. Que humanos são esses se os seus recursos são sempre os mais sórdidos? Os meus serviços não são mais necessários?! Ora essa! Nunca precisaram, de fato, de mim. Não é por necessidade que se sustentam relações como a de empregado e empregador. As pessoas precisam trabalhar, ganhar dinheiro, comprar coisas. Assim fazem trabalhos desnecessários produzindo coisas inúteis que serão compradas por outros, que produzem outras inutilidades. Então, um dia alguém chega e diz que a inutilidade daquilo que você produz é ainda mais inútil que todo o resto. Te joga na rua sem a menor culpa.

O senhor permaneceu recluso numa compostura honesta e comedida. Olhava para o fogo e dava-me de esguelha a atenção que minha história pedia. Eu continuei:

- Justiça. Justiça! É isso que falta ao mundo. Se os homens fossem mais justos... Afinal, de quantas coisas precisamos pra viver? É mesmo necessário que todos trabalhem o tempo todo? Claro que não! Bastava um revezamento planejado e trabalharíamos todos no máximo 3 meses por ano, dividindo tudo igualmente entre os homens, todos os homens. Isso sim seria justiça. –

E me excedendo, como que atribuindo necessidade maior que aquela realmente disposta sobre a atenção que o homem me dava, perguntei-lhe: - Justiça! O senhor sabe lá o que é isso?

Virou-se na minha direção e começou uma história: - Li certa vez uma história sobre um antigo reino em que certo ladrão, tendo o olho furado, acidentalmente, por um tear enquanto invadia, na escuridão da noite, uma fábrica de tecidos (por engano, já que queria, de fato, era roubar a loja de um cambista), havia reclamado justiça ao rei, porque cego de um olho não poderia agora cumprir com perfeição seu ofício, o de ladrão. O rei, comovido com a dor do ladrão, mandou que chamassem o tecelão, dono do estabelecimento, e exigiu que lhe furassem um olho para que assim se re-estabelecesse a justiça. O tecelão disse ao rei que precisava dos dois olhos para exercer seu trabalho, já que o trabalho lhe exigia aptidão com as mãos e também com os olhos, mas comentou sobre um seu vizinho que era sapateiro remendão e que, portanto, não tinha necessidade os dois olhos para o cumprimento do seu trabalho. O rei, então, mandou que chamassem o sapateiro e furaram-lhe um dos olhos. E a justiça foi feita, concluía a história – disse o velho.

Demorei um pouco a assimilar esse gênero de “sabedoria” Gibran Khalil que saltava por entre os pelos da barba do homem e, por fim, concluí eu mesmo e comigo em silêncio: “velho de merda”.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O caminho das pedras

Andei pensando. Literalmente.

Não sei o que é, mas me faz sentir bem.

Ignoro o percurso, porque enquanto caminho sou todo cérebro.

Há quem já tenha dito que no andar alguma transcendência toma forma no espírito e é apenas enquanto estamos andando que a existência se mostra a nós por completo. Bom, há também quem diga o contrário.

Os que meditam, por exemplo, dizem do corpo imóvel a urgente possibilidade do encontro com o superior – estado da alma que escapa a esses brutos que por aí se mexem à toa.

Mas se assim fosse, creio que haveria muito mais mérito nas estátuas vivas que o que de costume atribuímos a elas - essas que assombram nossas praças pintadas em pelo, muitas das vezes segurando um livro atilado em um tecido da cor da tinta que trazem no corpo e fechado, como se a leitura ultrapassasse a razão: - “Estátuas não lêem!”, bradam elas em silêncio, com o corpo imóvel e os lábios batidos, mas infladas daquela mesma sabedoria que os monges budistas se valem no exercício da meditação.

Ficar parado? Que merda de sabedoria é essa?! Não me admiraria se o Buda fosse ainda mais gordo que o que se vê naquelas estatuetas, embora isso também não seja tão provável.

Por isso, eu ando. E nem por isso limito a consciência, que trabalha tangente ao corpo em suas próprias demandas. Quarenta minutos à fio, até que cansem as pernas; porque a mente não pára e tem vida longa muito além desses músculos mecânicos, motores; e anda sozinha na periferia do olhar vagabundo, compreendido entre o trajeto do corpo que guia e as não-bordas que à volta se quase enxergam.

Filosofia de vida, eu diria. Andar pensando (ou seria pensar andando?). Ainda que possa dar nota aos modelos que passam, ou parar pra tomar um açaí (caso tenha dinheiro), é o andar quem descreve a atividade.

Rezam, os mais comprometidos com a filosofia, que se deve sempre andar sem destino.

Eu, por acaso, parei na frente desse puteiro. Um dos mais sujos da cidade. Mas o que não tem brilho na face compensa no preço. Agora, as protagonistas são as pernas de terceiras. Verdade que ainda estou sóbrio demais pra encarar uma dessas...

Enquanto isso, escrevo.