quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

O Caixeiro

- Estou dentro de uma caixa. – disse-me certa vez um porco-da-índia. Era um daqueles pequenos que se costuma chamar porquinho. - Ora essa, meu caro, tens abrigo, conforto e comida, por que reclamas da vida? - Eu lo disse como quem dá o consolo como argumento.

Depois pensei naquilo e percebi, na lembrança da expressão daquele porquinho, o quão entediante era pra ele aquela vida; o próprio tempo que se declarava naqueles hábitos pueris. E não foi preciso um grande esforço para tocar na grande questão da vida moderna-contemporânea (já que só essa eu conhecia). Vivíamos todos dentro de uma caixa. Andando de dia entre uma caixa e outra, a procura de um espaço que nunca nos era oferecido. Veja lá! Acordava sete horas da manhã e já estava dentro de uma caixa; saia desta e entrava em outra que se locomovia e me levava ao pé de mais outra caixa, na qual entrava e onde permanecia por longas horas. Ao fim do dia, aquele processo se repetia. Eu que pensava que aqueles pequenos furos feitos na caixa eram suficientes para satisfazer a necessidade de oxigênio do pequeno animal. Não eram. Do oxigênio em si, creio eu que aqueles pequenos pulmões se fartavam, mas também os meus pulmões careciam de um sem-número de experiências (fossem elas olor de rosas ou dióxido de carbono) que eu não poderia negar ao pobrezinho, pois, já àquela altura, compreendia o problema do pequeno porco, que não se resumia ao que a biologia me havia ensinado alguns anos antes. Então abri a caixa e o coloquei fora dela. Ele correu pelo chão do meu quarto de lado a outro e, finalmente cansado, parou e adormeceu. Olhei com certo carinho comedido aquele pequeno adormecido e fixei-me bem em seu rosto. Ele tinha cara de Nelson. Talvez eu devesse chamá-lo Nelson. Mas sempre tive o costume de não dar nomes - talvez para não me apegar. Aliás, eu já tinha feito muito por ele lirvando-o daquela minúscula caixa de sapatos. Naquele momento me ocorreu que qualquer que fosse a liberdade experimentada por aquele roedor, ela não duraria muito; apenas o tempo d’ele perceber que se tratava de outra caixa; uma maior, porém não menos restringente.

Eu não era o mesmo no dia seguinte. Um tédio arrogante se impunha sobre todas as minhas observações. E era justamente a única coisa que eu podia fazer ali: observar. Apesar disso, a condição de observador não me concedia nenhum tipo de licença existencial. Minha presença era de fato. Apenas podia observar porque estava ali, porque ali eu era, visto que ser e estar fossem a mesma coisa. Comprei, então, um aquário. Quando chegava em casa, assistia à reprise da minha vida condensada na solidão daqueles animais, como num reality show zoomórfico. Enquanto o porquinho-da-índia sublimava seu tédio conhecendo lugares do quarto, no qual ele agora se sentia livre - talvez por se tratarem de lugares desconhecidos até então (embora eu nunca vá compreender que espécie de liberdade é essa que se baseia em presença num espaço desconhecido)-, 5 peixes nadavam e flutuavam diante dos meus olhos, em um conjunto de hábitos e movimentos que pareciam a mais nítida interpretação de uma peça teatral fora de época, tal era o nível de inexpressividade daqueles seres. Era pior que isso: 5 peixes de cor laranja se misturavam naquela cena e eu não conseguia identificá-los individualmente. Tenho dúvidas, ainda hoje, se eles mesmos conseguiam. Imaginava a confusão mental de cada um deles tentando achar a si próprio entre os outros e o reflexo no vidro.

Em alguns momentos acreditava estar, também eu, sendo observado naquela cadeia metafísica de observadores, que observavam um ao outro, e eram todos observados por um maior. Mas estes eram só os momentos em que eu também acreditava em Deus, que eram poucos e curtos. A maior parte do tempo eu preferia negar, ter dúvidas ou apenas não pensar naquilo. Como eu, pensava que, também aqueles animais, não deviam pensar. Embora muitas vezes eu tenha criado imagens de um grande peixe laranja, criador de todos os mares e de todas as algas, ou d’um gigantesco porco-da-índia que se alimentava de florestas inteiras com a facilidade que abocanhasse pequenos galinhos de mato; e vejo agora, que está escrito, que dessa forma não poderiam ser deuses. Seriam monstros. Delírios agigantados. Mas como os monstros, também os deuses alternam suas façanhas entre criar e destruir, erguer e desmontar. Aliás, acho que somos todos assim; criaturas ou entidades, animais ou deuses, que sejam; nunca um só prédio se ergueu sem que ao menos uma pedra fosse partida.

Pobres animais. Eu os tinha - assim se diz ainda hoje dos animais a que se alimenta e se oferece abrigo. E, a menos que eles também domesticassem pequenas pulgas ou enormes micróbios que habitassem seus corpos, eles não tinham nada. Pensava naquilo e exceto, é claro, pelo fato d’eu ter que acordar todas as manhãs e ir para o trabalho, considerava-me mais sortudo que aquelas criaturas. Bobagem. O que é a sorte? A sorte é a qualidade atribuída ao sorteado, quando este recebe a dádiva da premiação de um sorteio. Mas ali não houve sorteio. Éramos simplesmente 7 criaturas diferentes; um homem, um porco da índia e 5 peixes, mesmo que entre os 5 peixes a diferença fosse menos significativa que a semelhança. Quando aquele meu momento de convívio com os animaizinhos a cada dia terminava, eu, irrefletidamente, voltava para o jogo das caixas. E, para não perder o costume, imaginava quatro mãos gigantes movimentando aquelas caixinhas, que eram minha casa, meu carro e meu escritório, enquanto poderosas vozes sem dono cantavam em uma afinação angelical: “escravos de jó, jogavam caxangá...”Eis, então, a grande coincidência que se revelará nesta história: o tal Zé Pereira trabalhava num escritório bem ao lado do meu. Embora isso seja tão irrelevante quanto desnecessário à história, aquela vizinhança não me era, particularmente, agradável. Esse é o preço que se paga por não se querer pagar preço maior em uma sala de escritório. Talvez eu preferisse caixas de fósforos, se fosse possível conter-me nelas. Mal me continha - com muito esforço - naquela minúscula sala. O que eu podia fazer? Como me livrar daquela prisão tridimensional que eram as caixas? Não bastaria sair de uma pequena para uma maior como acontecera ao ingênuo porco-da-índia.

Eu era a figura domesticada de mim mesmo, dentro do espaço que ninguém criou, embora seja mais fácil atribuir autoria às caixas. Por muitas vezes, cheguei mesmo a acreditar que aquelas caixas eram produto de um desenvolvimento natural do espaço, como eram as cavernas e os oceanos. Mas logo que batia de frente com alguma parede, cuja absoluta arbitrariedade da existência a escondia de meus olhos ingênuos, percebia que se tratava de um instrumento de opressão. Um instrumento de opressão controlado, visto que as portas forneciam passagem e as janelas alguma ilusão de liberdade, pelo menos à vista.

Cheguei em casa mais um dia e, como todos os dias, observava aqueles pequenos quase com a imparcialidade de um Deus. A forma como aqueles peixes estavam imersos numa caixa com água fez-me pensar que, também os humanos, se fossem vistos de fora, por extraterrestres, pareceriam estar imersos em alguma coisa. Respeitando, é claro, a diferença de densidade entre o ar e água, estávamos em situações muito parecidas. Assim também as paredes da caixa deles, como muitas vezes as das nossas, eram invisíveis ao pé de sua ignorância batizada.

Eu os alimentava diversas vezes. Queria ver a expressão de prazer do animal que sacia a sua fome. Era inútil. Eles não tinham expressão. Comiam o vigésimo quinto grão da ração exatamente da mesma forma que comiam o primeiro, e o quadragésimo. Minha mãe costumava dizer, quando eu era pequeno, que se você não parasse de alimentá-los eles comeriam até morrer. Eu ignorava a profecia e do alto de uma visão deveras displicente, pensava: Talvez o significado da vida de um peixe estivesse na quantidade de comida que ele ingerisse; eles estariam, assim, sempre buscando atingir o tal ponto; o nirvana; a chamada overdose. Quando o destino se completava, eles emergiam desfalecidos e seus corpos boiando com a barriga estufada eram a prova cabal da completude de sua existência enquanto peixes. Era uma teoria pouco crítica e um tanto romântica, mas eles não pareciam se incomodar com as enormes quantidades de comida que eu jogava dentro daquele aquário todos os dias. Aos poucos, um a um, aqueles foram morrendo. Ao final da terceira semana restavam apenas dois. E na semana seguinte foi-se o penúltimo. Não tinha importância, aquele último peixinho representava todos os outros. E de fato, eu sempre pensei neles como uma unidade. Como é a colméia: um grande organismo ao redor do qual orbitam todas aquelas partes sem individualidade que são as abelhas.

Na semana seguinte, eu já não me contentava mais com apenas aqueles dois: o peixe e o porco. Comprei uma pequena tartaruga, que o vendedor da loja me vendeu sob a alcunha de jabuti, explicando-me que tartaruga era nome usado de maneira mais correta para aquelas marinhas, enquanto estes eram répteis terrestres. Eu aceitei de pronto, mas ainda assim prefiro chamar “tartaruga” a esses pacientes jabutis. Vim depois saber que cágado era, também, nome dado àquela espécie. Talvez o fato d’aqueles animais possuírem tantas nomeações fosse a razão pela qual eu não dava nome aos meus. Eu preferia que a existência daqueles bichos fosse a mais discreta possível. Pois, não à toa, os animais que eu conhecia que tinham nomes próprios, eram demasiadamente arrogantes, como o era o próprio Zé Pereira, que fazia questão de levantar a cabeça e desviar o olhar toda vez que cruzava comigo no corredor do edifício onde ficavam nossos escritórios.

Fiquei muito decepcionado ao entender que tipo de criatura era aquela tartaruga. Passaram-se aproximadamente duas horas até a primeira mudança de posição daquele jabuti desde que eu o havia colocado no chão de meu quarto. Como os peixes (que agora era apenas um) ela não tinha qualquer expressão. Mas o seu espetáculo era ainda mais monótono. Talvez porque a sua caixa fosse ainda mais restrita. Ao primeiro contato físico que tive com a tartaruga, ela se retraiu inteira para dentro do casco. E apesar da forma irregular deste, aquilo não era senão uma caixa. Mas uma caixa sobre a qual eu não tinha o controle. O jabuti, em muitos aspectos, parecia ser dono de sua própria caixa. E aquilo poderia ser um testemunho de liberdade (do animal que podia se esconder da minha observação predatória em qualquer tempo), a não ser pelo fato d’ele estar preso àquela caixa desde o seu nascimento até sua morte. Verdade essa, muito comum aos apreciadores da sopa de tartaruga, que é servida nos restaurantes mais refinados dentro do próprio casco da dita cuja. Aquele tipo de caixa era, dentro de cada contexto, berço, abrigo, prisão, caixão e prato. Embora eu imaginasse ser muito confortável ali dentro.

Acho que não preciso mencionar que o meu quarto, àquela altura, não cheirava tão bem. Éramos quatro animais e três caixas, já que o porco-da-índia dividia o espaço comigo, agora, sem paredes entre nossos corpos. O cheiro das outras 2 se espalhava sem acanhamento pela grande caixa que era o meu quarto. Mas entendia que esse era o preço a se pagar pelo grande circo selvagem que se tornara meu espaço doméstico. Como eu também percebia que aquela minha obsessão pela domesticação estava em vias de se revelar patológica; e não iria parar por ali. Não tardou nem uma semana e lá estava eu, entrando naquele quarto com uma gaiola e dois periquitos. Era um casal deles. Aqueles animais eram vendidos apenas em casais; pelo menos assim me disseram na loja onde os comprei. Talvez fosse uma compensação pela liberdade que lhes fora tomada. Afinal, estas aves, na natureza, com o alcance e o despojo que permite o vôo, eram animais de largas áreas; áreas percorridas por elas de norte a sul, a procura de alimento e descanso. Ora, alimento elas tinham aqui, todos os dias, na mesma bat hora. Já a liberdade, o vendedor (e, porque não dizer, eu também?) pensou que pudesse substituir pela companhia do sexo oposto. Como acontece perceptivelmente com nós humanos, que, não raras vezes, trocamos certa liberdade da vida solitária pela clausura do matrimônio constituído. Mas, e devo considerar, se aquele pássaro pudesse escolher, tenho cá minhas dúvidas se ele não preteriria a vida estável do casamento engaiolado por obrigação, à livre concorrência da vida selvagem. Talvez tenha sido essa escolha entre os homens que tenha anunciado uma suposta vitória do capitalismo no pós-Guerra Fria, quando o fracasso da experiência soviética pareceu sufocar a convicção idealista de muitos dos socialistas mais otimistas. Embora seja uma analogia muito sem medida, onde eu me incorra do risco de desagradar, por um lado, a todos os outros socialistas. Mesmo afirmando em seqüência que a minha escolha pessoal seria aquela do periquito que prefere o cativeiro como certeza à incerta e relativa liberdade do capital e do homem descomprometido, e, nesse caso, eu estaria escolhendo como inimigos os defensores dos direitos dos animais, já que, para eles, nenhuma justificativa para manter um pobre animal em cativeiro seria tolerável. Estes, entretanto, já devem ter interrompido essa leitura na parte em que eu explicava a situação da morte de meus queridos peixinhos. Que assim seja! Não me arrependo. Aqueles passarinhos cantaram para mim como nenhum outro animal naquele quarto. Em troca, eu os deixei experimentar a espaçosa clausura do meu quarto, a minha caixa. Com as janelas devidamente fechadas, vi aqueles animaizinhos alçarem curtos vôos, rodeando todo aquele grande-pequeno espaço entre aquelas paredes que, como a epiderme de um corpo-cápsula, eram o lado de fora do dentro e o lado de dentro do fora. Recuei logo depois, achando melhor levá-los de volta à gaiola, quando, depois de um descuido no pouso, o pequeno porco-da-índia ameaçou uma mortal investida sobre um dos pequeninos pássaros. O porco-da-índia talvez quisesse dizer que aquele chão era agora o seu território, já que a tartaruga se mantinha acuada em um canto dentro de seu próprio casco e eu, o verdadeiro dono daquele território, não tinha como fazer aquele roedor entender tal hierarquia, pelo menos não com palavras. Embora, com palavras, aquele mesmo porco tenha iniciado toda essa narrativa. Pois mesmo que aquele porco me entendesse em argumento, ele jamais aceitaria o parâmetro na ausência do uso da força bruta. E, ora lá, era um pequeno animal inofensivo, não havia necessidade para tanto. Deixei assim aquele indiano orgulhoso, pregado sobre a altivez em suas quatro patas, achando que era, de fato, o dono do pedaço, que com pedaços eu alimentava todos os dias.

Eram belíssimos animais aqueles periquitos. Diferentemente da rusticidade que marcava o porco-da-índia e a tartaruga, e da indiferença determinante que melhor representava o peixe, esses dois eram, além de belos, deliciosamente exuberantes. Exibiam-se simplesmente. Era a condição de sua existência particular. As asas coloridas se redimiam de sua inutilidade naquela cela. Um deles era azul e branco, com pequenas manchas negras ao longo do corpo. O outro era amarelo e verde, e ligeiramente maior que o primeiro. Eu não sabia distinguir entre macho e fêmea, e cheguei a me questionar se o vendedor não me teria vendido, por falta da heterogenia na disponibilidade, dois machos ou duas fêmeas. Mas logo larguei de mão o questionamento. Não faria, mesmo, diferença alguma pra mim. Por alguns dias, cheguei a esquecer que existiam outros animais naquele recinto, embora o cheiro das fezes não me deixasse esquecer por completo. Eles se mexiam com graça e me encantaram por quatro ou cinco noites. Mas toda aquela pompa, postura, soberania, foi-se revelando como excessiva arrogância. Talvez aqueles pássaros se achassem melhores que os outros animais. Talvez eu achasse que eles achavam isso. O fato é que em algum momento senti na expressão daqueles animais essa declarada e excessiva arrogância. Logo enjoei deles; como antes dos outros. Não que eu não nutrisse nenhuma espécie de carinho por todos, mas não superestimava aquelas presenças, como fossem eles parte de alguma verdade que me pudesse preencher, ou um sentido maior para aquele conjunto de formas sem propósito que era a minha vida. Não era isso. Mas, no final das contas, eram apenas animais que eu domesticava...

Aquilo não estava certo. Aquele uso de meu espaço privado não estava a me libertar de forma alguma. Ao contrário, eu estava cada vez mais preso a cada uma daquelas caixas; a gaiola, o aquário... O dicionário dizia dela - a caixa - entre outras coisas: “Qualquer objeto ou peça que resguarda ou contém outra.” Falava também de uma espécie de papagaio feito de papel, mas no largo daquelas muitas definições que dava, em maior parte referia-se a procedimentos financeiros; referenciava em quantidade a importância que nessa vida se dá ao dinheiro. Ora essa, eu já devia saber que é mesmo o dinheiro a linguagem das caixas. Compram-se e vendem-se, pessoas ou caixas. As segundas dão conta da guarda dos dois (dinheiro e pessoas), as primeiras são responsáveis pela manipulação funcional dessas caixas; abrir, fechar, mover, manter buracos na lateral para evitar o sufocamento... Já, aos papagaios de papel, não se necessitava o engaiolamento. Talvez fosse uma forma de liberdade, o papel. As palavras pareciam contidas ali, naquele dicionário, naquele papel. Mas não estavam. Não se podia dizer daquilo exatamente uma caixa. Logicamente, a sua condição física de palavra ficava restrita àquela tinta impressa, mas a palavra existia independentemente daquela impressão. Por outro lado, a caixa daquelas palavras éramos nós, os homens. Elas diziam todas de nós; de nossos feitos; de nossos conhecimentos; de nossa estupidez. Ainda com o dicionário à mão descobri que “canxangá” era nome dado a uma espécie de crustáceo, vulgarmente conhecido como siri. - Piada! – logo pensei. A vulgaridade ali, pra mim, residia naquele tipo de linguagem que dava a um animal tão ordinário uma distinção tão formal. Logo percebi a espécie de recalque que aquele livro submetia às palavras. Não era o papel em si, mas a institucionalização daquele livro fazia dele não menos que uma pequena caixa de palavras. Eu, então, me corrigi. Era o dicionário, também uma caixa. Estava decidido. Todos, ali, presos a uma classificação. Éramos animais, palavras ou caixas. Estávamos todos ligados de forma a dificultar o reconhecimento de qual desses éramos. Animais, palavras ou caixas são todos palavras, ditas ou escritas por animais, presos como as próprias palavras em caixas, feitas por animais - palavra.

Tudo isso depois se mostrou quase como profecia. Aqueles animaizinhos morreram todos, cada um ao seu tempo. As suas caixas ficaram esquecidas dentro de outras caixas. Das palavras que restaram, falam deles apenas com uma suave nostalgia, que não se chega a fundar em saudade. As grandes caixas permanecem contendo pequenas pessoas, e mesmo as que se acham grandes. Como o Zé Pereira, que não é grande, e muito menos “grande pessoa”. Mas apesar das minhas convicções, de não dar nomes aos meus animais, tenho ainda hoje uma pequena ressalva. Penso com certo arrependimento, se eu não teria devido chamar aquele pequeno porquinho-da-índia de Nelson. Ele tinha uma cara de Nelson...

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Pra que ser perfeito?

A Pergunta parece uma piada, mas eu levo a sério.

Eu quero ser Perfeito.

(Pausa para bebida. O que beber? Qual a bebida tem esse nivel de existencialismo?

Uísque.

Será que eu tenho copo de Uísque em casa? não. o mais próximo é uma xícara. Tem uma barata morta dentro.)

O que é a perfeição?

Besteira essa discussão. Eu sei que não vou ser pefeito. Mas eu quero ser perfeito.

Por onde começar?

(Duas pedras de gelo e uma balançada. um gole longo e seco seguido de uma longa exalada de ar)

Justo. A primeira direção é da justiça.

Independente de ser bom ou ruim, ser justo é o primeiro passo.

O justo não precisa ser bom, mas não pode ser ruim.

O que leva a segunda direção:

(O gole é mais longo. o ar é exalado em menor volume)

- Bondade.

Se você não sabe o que é mal e o que é bom, tudo bem.

Honestidade, você pode até questionar o que é, mas acho que é simplesmente não enganar ninguém propositalmente.

Quem não sabe o que é honestidade, sabe o que é enganação.

Sou justo, sou bom, sou honesto.

E trabalhador.

Cumpridor dos horários e das responsabilidades relacionados á minha fonte primordial de renda.

Raramente fico o doente, pelo menos não o doente o bastante para não trabalhar.

As vezes falho, mas nunca fujo.

Sou leal.

Faço questão de corresponder as expectativas por mim prometidas. Ou pelo menos procura-las ardentemente.

Talves existam perfeições melhores que as minhas. Com certeza tem gente mais perfeita do que eu.

Mas pra que tudo isso?

Da mesma forma me tratam como merda.

Posso até ser perfeito, mas sou um merda.

(Mas uma xícara. "E a barata?". barata?)

Eu nunca tive a preferência pra nada. Eu sou aquele que não atraplha nem ajuda. O perfeito. O merda.

Esse Uísque me deu vontade cagar.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

...que tudo que a antena captá, meu coração captura...

Semana passada, pus meu televisor no conserto. Isso porque sou dessas criaturas antiquadas que ainda crêem no conserto de certas coisas, embora minha crença não se estenda para muito além dos aparelhos eletrônicos. De qualquer modo, compreendo perfeitamente o protesto que sempre me chega aos ouvidos nessas horas, de que sai “muito mais em conta” comprar logo uma nova. Mas penso isto: - que diabos de ser humano eu seria se não desse à velha tevê uma segunda chance?

Quando cheguei à loja, percebi logo que a clientela do lugar, se sua idade fôsse posta em média, cercaria a casa dos 65 – isso contando com o descenso significativo dos meus quarenta e poucos já contabilizados na média. E porque, então, deveria ser diferente? As novas gerações sempre tão acostumadas aos descartáveis, jamais entenderiam o ofício dêsses trabalhadores manuais, que se já não vislumbram nova profissão, certamente engolem sequiosos a expectativa do desemprego - senão em alguns meses, em poucos anos, com algum otimismo. O caso é êsse: disse-me o rapaz que ficaria pronta em dez ou doze dias. “Uma semana ou duas” – acrescentou como se quisesse me certificar de que “dez ou doze” não tem lá a matemática precisa que computam os da velha guarda que por ali costumam passar. Em tôdo caso, saí satisfeito, já que temia ouvir de sua boca, como a sentença inexpugnável de um médico da família quando diz: “não tem mais jeito!” Ora lá, que são dez ou doze dias - e ainda que sejam catorze, quinze ou dezesseis - quando se tem a solução ao alcance? Quisera eu que essa irretorquível lógica tivesse alguma mínima inteligibilidade para os jovens de hoje.

Passaram-se quatro e cinco dias; seis e sete; e esse oitavo no qual me encontro agora. E se dei toda essa volta para arribar em novo problema, foi porque não poderia ter passado sem o transcurso que se deu, já que faço imperativo que vejam a pessoa esta que sou, para que assim, também, minhas palavras se possam ler com contexto e vizinhança. Fiz-me o prato de acôrdo com a comedela de que dispunha. Nada, porém, de exageros. Dos exageros, basta-me esta abaciada pança que me vale - ainda que eu debique feito passarinho – a fama de esgalamido entre os colegas de trabalho e, também, toda a gente que se põe a julgar meus hábitos alimentares apenas pelo que consegue ver (embora meus 98 quilos não sejam, assim, coisa menor à vista). Mas que diabos! Isso nada tem a ver com a história... Jantava serenamente à mesa depois da senda praticada repetidamente durante o dia, quando inconsulta solidão invadiu-me o ânimo. Soube logo do que se tratava. Jantava todos os dias à frente do televisor e, naquele momento, passava sem essa. Logicamente, não foi uma súbita saudade. Havia sentido sua falta durante a semana, especialmente nas horas de janta, quando me punha sozinho com meus pensamentos, já que o comer me é automático e dispensa a maior parte do intelecto de que gozo. Mas um náufrago qualquer saberá reconhecer que a solidão do oitavo dia é sempre mais inflamada que a do sétimo. E chego aqui porque tenho isto a dizer:

Não raro chega-me aos ouvidos calorosas reclamações ao teor conteudístico das programações televisivas e, geralmente, abstenho-me do questionamento. Penso: “não se aprende mesmo nada com a tevê”. E, no entanto, percebo agora que nada do que faço ou procuro fazer diante do aparelho que tenho em casa está, de fato, relacionado a qualquer forma de aprendizado. Ora, a constância do ruído; as ataviadas figuras dos programas que se repetem; a luz intermitente e as alterações luminosas dadas com as trocas de quadro e, sobretudo, a excessiva leviandade de nossa relação com o suposto conteúdo da praça são, em propósito, o argumento definitivo para que afirmemos dela –a televisão – não um difusor de conteúdos, mas a companhia mundana a qual escolhemos por arbítrio circunstancial, porque nem sempre verdadeira é a máxima do antes só que mal acompanhado. A solidão, pois, que eu ali sentia era aquela mesma proporcionada pela ausência do amigo diário, que viajou e não volta até a próxima semana. E se convém a chancela dessa metáfora, logo, não se deve ter em parâmetros análogos o juízo que dela, a televisão, se faz? Que tipo de criatura avessa é capaz de mal julgar um amigo sob o epíteto de que não tem conteúdo? Aliás, muito comum é o determinado de que as mesmas pessoas que criticam com suma eficiência o conteúdo dos programas que lá passam pela televisão, sejam aquelas que ostentam os mais néscios partidários.

Lembro-me, agora, de uma canção certa feita me vinda aos ouvidos, que culpava a televisão pelo excessivo emburrecimento daquele que a cantava. Mas burro êsse de bom senso, que é capaz de reconhecer-se na completa ignorância; ou, então, tão burro é que não podemos tomar-lhe as palavras ao pé da letra e, nesse caso, deve mesmo é sê-lo de intelecto acima da média – deste modo também versado em paradoxos. Tudo o que sei é isto: que emburrecer é coisa pr’aqueles que têm propensão ao trato e, de qualquer modo, não acredito que venha a ser esta a função do amigo presente, mas outra: a de acalmar com a ternura de sua mais severa inaptidão e, no pior dos possíveis quadros, fazer tornar-nos mais tolerantes a essa.

(Quatro dias depois...)

Liguei para a loja e o rapaz respondeu-me que eu teria que esperar por mais dois ou três dias. Indignado e ignorando as ressalvas em que se teve marcado aquele “uma semana ou duas”, impetrei-o sem dó: “Você não tinha dito ‘dez ou doze’? Não quero saber! Ou essa televisão fica pronta hoje ou eu processo essa bodega por quebra de contrato oral!” – acho que nem preciso dizer, mas essa aprendi foi com a tevê.