sábado, 29 de agosto de 2009

"Espírito esportivo"

Sentados num bar pouco católico, num beco obsceno localizado em uma das famigeradas e sinistras ruas do baixo glória, bebíamos Eu, Sr. F., Sr. M. e Sra. A. Uma televisão suspensa na parede do bar fazia-nos levantar a cabeça para assistir a uma ou outra jogada de uma certa equipe de vôlei pela qual... não vou dizer “torcíamos” posto que fossemos pessoas do futebol e o vôlei se nos apresentasse como esporte de menor argumento - tal como totó ou tênis de mesa, talvez - mas na falta de melhor entretenimento acompanhávamos aos goles aquele jogo a nossa ébria maneira. A equipe de amarelo era a que despertava simpatia da maior parte das pessoas no recinto e o jogo seguia independente de qualquer desatenção nossa.

***

Falava o Sr. M um pouco bêbado – Vamos pra onde depois?! O bar aqui fecha cedo, que tal irmos lá pra casa?! – Se preparava para beber mais um gole enquanto falava, segurando o copo no ar e levando-o à direção da boca em um gesto reticente que interrompeu duas ou três vezes entre uma palavra e outra. A Sra. A, que se sentava ao meu lado – de frente para o seu interlocutor – estranhou a proposta por conta de um detalhe que não pode fugir ao relato. O Sr. M era casado e sua esposa costumava dormir cedo em quintas-feiras como aquela. Perguntou ela sem fazer caso – Mas a sua esposa não está em casa? Não vamos incomodá-la?! – o Sr. M abriu um leve sorriso como quem bradasse a ingenuidade de uma criança e disse a ela meio que resolvendo uma dúvida e solucionando a noite – Ela foi pra São Paulo, só volta amanha de tarde.


A mesa ficou em silêncio por alguns segundos e a voz do locutor chegou de raspão aos nossos ouvidos, já que o barulho do bar era constante e considerável - “Que cortada sensacional! E é ponto da equipe...” – Olhamos os quatro para a pequena televisão que brilhava acima de nós. Sr. M e Sr. F, que estavam de costas para a TV, foram obrigados a torcer um pouco o pescoço enquanto a emissora que transmitia o jogo reprisava a grande jogada da equipe amarela. O jogador subira lá aos, talvez, 3 metros e meio de altura e fez passar a bola por entre os braços de um bloqueio triplo da equipe vermelha. A bola caiu sobre a linha lateral no fundo da quadra. Era o vigésimo quinto ponto da equipe e o primeiro set encerrava-se com uma vitória tranqüila para os amarelos.

Sra. A. abriu um largo sorriso, encoberto por aquela entusiasmante jogada, embora eu soubesse tratar-se da satisfação retardada, por conta de um mecanismo de proteção qualquer, com a resposta dada pelo Sr. M. naquele curto diálogo que antecedeu à jogada. Exceto a ingenuidade da Sra. A., que pensava não fazer aparentes seus sentimentos e intenções, sabíamos nós - os outros - que uma trama particular se desenrolava subterrânea naquela mesa de bar. E um diálogo se alongava sem o menor sentido entre Sr. M. e Sra. A.

- Você é muito escroto. A sua mulher viaja e você fica bêbado que nem um gambá e quando ela volta você aquieta e fica parecendo um suburbano evangélico de bíblia nos braços. – dizia Sra. A., rindo como uma ovelha entre soluços agudos que emanavam de sua embriaguez.

- Eu sou homem do mundo minha filha. Bebo com ou sem mulher me regulando a torneira. Bebo porque é líquido, porque se fosse sólido... – e ria também o Sr. M e os dois achavam graça da conversa que tinham, alheios a mim e ao Sr. F.

***

Estava bastante claro que o Sr. F. e Eu éramos figuras altamente dispensáveis naquele enredo que ali se fazia. Quadjuvantes assumidos, assistíamos ao desenrolar de uma situação dramática apenas porque tinha o drama com vértice. A Sra. A., que parecia uma fanática torcedora daquele esporte de pouco contato, nutria um sentimento exagerado por aquele “o Sr. M.”, que não só sabia do caso como o usava em um estranho jogo pessoal de auto-satisfação de ego ou sei lá o quê. Sorria após cada palavra que atirasse à Sra. A. com intenção de fazê-la pensar que terminariam a noite juntos, sem, contudo, deixar graves insinuações sobre o prospecto. E se Eu e o Sr. F. entendíamos tudo era por força de uma alta capacidade nossa de compreensão de gestos e sorrisos subliminares e pelo fato de um jogo de vôlei como aquele não servir de parâmetro para o entusiasmo e a satisfação daquela mulher que mal compreendia o porquê de pularem tantos jogadores enquanto apenas um era preciso para mandar a bola para o outro lado – pensava ela em voz alta quando na verdade pensava mesmo em outra coisa: “Esse jogo vai ser moleza, duro mesmo será o jogo da próxima fase.”

Enquanto a equipe amarela fechava mais um set com certa facilidade os ânimos começavam a se exaltar. Falavam mais alto os dois: o Sr. M. e Sra. A. Isso porque Eu e o Sr. F. exercitávamos nosso laconismo de objetos de figuração. Não que nos incomodasse a situação. Eu pelo menos não estava incomodado. Solidarizava-me em certa medida com a Sra. A., pois sabia que era ela o lado mais fraco, do mesmo modo que me compadecia com a equipe vermelha no jogo que passava acima de nós. Mas era uma solidariedade absolutamente passiva, pois Eu sabia, como quase todos naquela mesa, que os dois jogos já estavam perdidos - para ambos. O Sr. F., que era mui amigo do Sr. M. (mas do que meu ou da Sra. A., certamente) ficava um pouco desconfortável por certa crueldade que estava implícita no jogo do Sr M. Mas, verdade seja dita, também ele houvera praticado aquele tipo de jogo em situações similares. O desconforto devia ser só a falta de prática de estar diante daquela novela, sem ser o protagonista da coisa.

E antes que a equipe vermelha pudesse esboçar uma reação, a Sra. A., um pouco apressada, tomada por uma euforia que acomete os de situação comum a ela, tratou de apressar a ordem das coisas, como havia sugerido o Sr. M. – Então, o bar está fechando, o jogo acabando, vamos pra sua casa?! – Entregou a bola para o Sr. M., que rebateu com violência impiedosa: - Não, não! Lá em casa não vai dar. Minha mulher está trabalhando até tarde hoje. A gente vai acabar atrapalhando ela lá. – Todos se entreolharam. Menos Sra. A., que de tão abatida pela resposta demorou lá uns 2 minutos para confirmar a suspeita com uma pergunta quase objetiva. – Como assim?! Você não disse que sua mulher tinha viajado?! -. Mas mais objetiva que essa foi a resposta precisa e aguda do Sr. M.: - Eu tava mentindo. – e gargalhou em seguida como fosse o autor de uma das mais engraçadas piadas das ultimas décadas. Ninguém mais riu. Sra. A. esboçou um sorriso pensando desfazer, assim, a impressão causada com aquela hesitação que minutos antes a acusava de ser pessoa ingênua e de nenhum espírito esportivo. Sabe-se que no final do jogo a equipe vermelha cumprimentou a equipe amarela, de cabeça baixa Mas sem nenhuma palavra desrespeitosa atirada. Foi assim que entendi o sorriso de Sra. A. naquele instante. Mas passaram-se alguns minutos e nenhum espírito esportivo conseguia mascarar aquela tensão insuportável que emanava do semblante dela. E Eu, que havia lamentado o trágico final daquela história, apenas esperava a derrota da equipe vermelha para levantar-me e ir para casa. E foi justo o que aconteceu.

Assim que me levantei, Sra. A. disse-me que iria comigo. Despedimo-nos do Sr. F. e do Sr. M., e seguimos juntos apenas o caminho que era comum ao de nossas casas. E nesse curto trajeto que fizemos, antes de nos separarmos, fui obrigado a aceitar com contrariada voluntariedade duas ou três patadas, visto que de uma pessoa frustrada como aquela estava não se podia exigir muito mais. Como também não se pôde exigir, aos jogadores da equipe vermelha, o sincero sorriso empunhado ao apertarem as mãos dos vencedores, seus adversários.

E digo isso:

- Eu nunca entendi muito bem, mesmo, o significado da palavra esporte.